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segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Uma história em quadrinhos: representatividades do hoje sobre o ontem




Herasmo Braga
Professor universitário

Não é de hoje que a história explora novos universos. Vários historiadores se debruçam sobre os mais variados temas, objetos e metodologias. Dentre deste universo de abordagens queremos destacar algumas relações entre as revistas em quadrinhos e a história.
É reconhecido por todos que, hoje, a subjetividade do historiador está mais presente em suas análises. Antes o que era tido como ingerência na investigação, agora funciona não só como complemento de estudo, como também, critério seletivo. Acreditamos que toda e qualquer produção humana tem de contribuir para a formação e desenvolvimento dos indivíduos. Assim, quanto mais amplo for esse conhecimento, associado à sensibilidade e experiência maior probabilidade de uma construção historiográfica significativa. Portanto, cabe ao historiador não só o manejo seco com os documentos, mas disponibilizar todo o capital cultural que ela possa vir a ter, pois isso possibilitará um melhor texto e um melhor tratamento do objeto em estudo. Todavia, não só esse cabedal intelectual e sensitivo fará a diferença. Reiteramos a necessidade do saber passar aos outros o conteúdo verticalizado, portanto, escrever com clareza, simplicidade e envolvimento será uma atitude de grande valia para a divulgação do conhecimento histórico.
À medida que homem se aprofunda e prolifera conhecimento, ele por vezes acaba constituindo inverdades. Dentro delas encontra-se de que ao analisar uma produção cultural o aspecto estético deve ser deixado de lado. A esteticidade ou a tradição cultural são ainda encaradas, por muitos, como mecanismo de exclusão da maioria. Esse pensamento vigora devido as possíveis dificuldades de acesso e entendimento das grandes obras. Entretanto, esse tipo de posicionamento deve ser refutado, pois a experiência estética diz muito dos contextos interno e externo das construções humanas. Portanto, cabe ao historiador ao erguer o seu andar sobre algo, deve levar em conta a grande importância que tem as formulações estéticas das produções artísticas, devido elas terem muito a dizer. Interessante, também, o historiador estar desprovido de suas amarras ou preconceitos sociais que teimam em elevar algumas produções artísticas e ridicularizar outras.
Assim, utilizar as revistas em quadrinhos como fonte de documentação histórica não constitui, a nosso ver, nenhum demérito, pois as produções artísticas desse gênero apesar das suas fortes ligações ideológicas e com a cultura de massa, descreve com qualidade os nossos momentos subjetivos. Podemos exemplificar esse tipo de atuação com as revistas que contam com a presença da personagem da Disney Margarida. A sua primeira aparição surgiu em junho de 1940 no desenho animado Mr. Duck StepsOut. A sua principal característica, apesar de ter uma personalidade forte diferentemente da maioria dos personagens até então, era de ser apenas uma coadjuvante das aventuras e desventuras do seu namorado Donald. Mas a partir de 1950 com Carl Barks é que começaram aparecer as próprias histórias da Margarida. A personagem feminina da Disney estava dotada das seguintes características: anotava em seus diários acontecimentos cômicos, analogias de romances idealizadores, situações de ciúmes e os seus hábitos consumistas e fúteis por ela vivenciadas. Sua maior ocupação era ser presidente do Clube Feminino de Patópolis em que organizava cursos de culinária, costura, bordado e eventos beneficentes.
Mas a partir da década de 80 Margarida começou a mudar. Em A Moda é Mudar (1986) ela decide resignificar não só o guarda-roupa, mas outros elementos. Com o tempo ela passa a somar em torno de si pensamentos e qualidades distintas dos anos anteriores. Margarida passa a ser uma cidadã-consciente, busca inserir-se no mercado de trabalho, passa a dar mais importância à aparência vista agora como valor. Põe de escanteio o estereótipo de sexo frágil e em seu relacionamento amoroso passa a ter agora sua iniciativa, independência e se ver em diversas situações em contradição constante com a personagem de outrora.
Concordamos com o discurso de Agda Dias Baeta expressa no livro Muito Além dos Quadrinhos (análises e reflexões sobre a 9ª arte) “não só a criatividade e o talento dos artistas foram fundamentais nesse processo, como a sintonia que possuíam com o ambiente social no qual estavam inseridos. A adequação dos personagens e dos enredos às experiências do mundo real são os fatores que resultaram no grande sucesso obtido junto ao público leitor”.
Assim o diálogo entre o texto e contexto é sempre fluido e constante. Deve o literato, o historiador perceber e saber ler essas conversas. Devendo desconstruir inverdades, desprovendo-se de limitações e preconceitos. Retirando e tratando sobre os pontos que venham a contribuir para as reflexões construtivas de hoje.

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

O contista Airton Sampaio



Herasmo Braga
Professor universitário

Na visão de alguns críticos brasileiros, a nossa literatura, quando comparada com outras mais tradicionais, apresenta-se de forma imatura. Falta-nos um pouco mais de tradição literária. Todavia, destacamos que o elemento fundamental para o engrandecimento literário nacional está diretamente relacionado com o tripé essencial da produção: autor, obra e leitor.
O nosso país, de características singulares, tem em sua conta alguns pontos que comprometem a nossa expansão cultural e econômica, como por exemplo, a escassez de leitores ativos e seletivos. Entre estes poucos leitores e produtores de qualidade literária, destacamos o contista Airton Sampaio, autor das obras Painel de sombras, Vencidos e Contos da Terra do Sol. Sem cometer exageros, podemos considerá-lo como o que melhor domina a técnica da narrativa curta em nosso meio. Leitor voraz e dedicado de Machado de Assis, Airton Sampaio sobressai aos demais pela profunda e refinada ironia presente em seus textos.
Apesar do nosso meio carente em que impera a preocupação em desqualificar os outros por motivos pessoais, ou se mostrar de maneira imatura como escritor ou crítico literário, mesmo faltando muitas vezes em suas considerações maior consistência literária ou aprofundamento teórico e prático para se desenvolver uma crítica de qualidade, Airton Sampaio se apresenta como exemplo de um escritor que desenvolve a sua escrita com paciência e primor. Desconsidera fatores secundários e levianos como belo letrismo ou as vaidades literárias. Através de uma estética realista, bem trabalhada e fundamentada, realiza denúncias e reflexões sobre as mazelas acometidas sobre nós, restabelecendo assim uma ligação forte da literatura com uma de suas funções que é de transformação de sujeitos, instituições, valores e mentalidades. Esse aspecto fica bem evidente, por exemplo, no conto Madalena exposto logo abaixo:
O vestido rasgado, o corpo sujo, o rosto retalhado, as mãos nos cabelos desgrenhados: Madalena nas ruas da infância. Quando ela passava, catando restos de comida dos lixos, os meninos a cercávamos e, atirando pedras, gritávamos:
– Madalena! tira! tira!
Madalena levantava a veste surrada, os meninos vibrávamos. André, o filho do bancário, ia a casa, trazia uma lata de doce. Madalena, morta de fome, seguia André, ou melhor, o doce. Pouco depois, nós e ela, o tamarineiro sobre.
Algazarra. Cada um queria primeiro. André botava moral, o doce é meu, dizia, o primeiro sou eu. Madalena, os olhos na lata de doce, deitava-se, abria as pernas, aí André, e outro, e outro, e eu...
No fim, Madalena exausta, arrasada, curvava-se sobre a lata de doce, comia avidamente. Depois, o estômago feliz, ficava a olhar pra gente com uns olhinhos tão meigos, com um sorriso tão puro, que eu voltava pra casa com uma dor no peito, um ódio de mim, dos homens, do mundo.
Um dia, a notícia: Madalena morrera. O padre recusou-se a encomendar o corpo, não tenho tempo, vou ao batizado de um filho de um deputado, como posso encomendar o corpo de uma mendiga, hein, como posso?
Enterraram-na sem caixão, num cemitério distante da cidade. Hoje, passado tanto tempo, ainda lembro-me de tudo com extrema, violenta nitidez. E sinto nojo dessa minha primeira lição de miséria.
A meu ver, este conto do Airton Sampaio é o que melhor reflete toda a sua criação rica e vigorosa. Uma produção que associa a tradição engajadora social e literária. Apresenta o olhar atento ao seu tempo. Na sua construção, não vemos uma produção de denúncia pela denúncia com uma linguagem panfletária, mas uma produção significativa, delimitada e, na economia da linguagem, promove a elevação da condição nossa humana e literária.

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Crônica aprendida no dia

Herasmo Braga
Professor universitário

Costumo dizer em sala de aula que inteligência não ficou para todo mundo. Diante do espanto e da indignação dos meus alunos, explico-me melhor: para ser inteligente tem-se de estar aberto para as possibilidades, atento ao que acontece próximo e perceptível das sensações, além de se dedicar a vida e aos livros. Para ser inteligente, portanto, devemos ter sensibilidade e reconhecimento do mérito.
O ato de viver seria fruto de uma grande injustiça se a alguns fosse dado saber e a outros não. Acredito que a todos fora disponibilizado pela natureza a nossa capacidade intelectiva, todavia, com o mau uso ou o não uso dela, acabamos por impossibilitar de viver mais e melhor. Hoje mais do que nunca a vigência da relação de homem, desejo, artificialidade, produto, consumo se apresenta de maneira intensa e sutil. Nossas relações se voltam para as representações em que o aparentar ter é melhor do que ser.
Infelizmente, temos vivido em uma sociedade de pessoas zumbis. Sujeitos que automatizaram o ato de realizar, pensar e sentir. Falta-nos uma melhor formação para que possamos acordar deste estágio e poder desfrutar dos instantes de felicidade que o viver nos permite.
Baumam em seu livro Amor Líquido se expressa: “quanto mais velho você é, mais saber que os pensamentos, embora possam parecer grandiosos, jamais serão grandes o suficiente para abarcara generosa prodigalidade da experiência humana, muito menos para explicá-la” é nessa interatividade intelectiva, sensitiva e humana que precisamos. Dentro de uma sociedade transitória, líquida, efêmera temos que aprofundar os laços e promover mais ramificações. Distanciar-se de fronteiras infrutíferas que tornam sapos alguns e reis os que vêem mal ou fingem. Dentro desta dialética do cosmopolitismo e do provincianismo romper rumores. Buscar a terceira margem como o homem do rio e não perder a capacidade de sonhar e buscar.
Assim, não ficar indiferente diante de uma tela de Van Gogh ou uma estátua grega do século V a.C., pois são para encontros/aprendizagens como esses que devemos ter desenvolvido pelo meio da inteligência a percepção sensitiva. É através dos apurados sentidos que temos nossos instantes de glória.
E não encararmos Sebastian Bach e tomá-lo como algo burguês ou feito exclusivamente para a elite, pois se assim fosse, Bach estaria silenciado. Poucas coisas são tão profundas e divinas que ouvir Bach. Nada se compara a ele.

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Não imaginava que seria tão ruim




Herasmo Braga

Não me diga nada! Não quero saber.
Entendo você. Sei que não é fácil, mas você já sabia disso.
Eu sei... É que agora... É muito pior quando você me falou. Sei lá é tudo muito confuso...
Arrependido?
Não, acho que não, mas meio confuso.
Você é novo tem muito que viver. Eu gosto de você, mas sei que não tenho esse direito.
Me deixa um pouquinho em paz, por favor?!
Tudo bem. Vou me deitar, o dia não foi fácil.
O que houve de diferente dos outros dias?
Nada! Todos os dias são difíceis... Não tem nada de moleza. O dinheiro que ganho é muito sofrido. Contrário do que muitos dizem por aí.
Amor deixa essa vida. Eu garanto o nosso sustento!
Não seja fantasioso. Você sabe que não é fácil eu largar tudo isso. E muito menos você garantir as nossas vidas.
Eu deixo a faculdade o que for preciso. Trabalharei os três turnos, mas não quero te ver continuar nisso.
Infelizmente, você já sabe que não é nada assim do que você disse. A vida é muito mais complexa e traiçoeira. Se eu aceitasse sua proposta estaríamos fadados a fome.
Mas eu não quero continuar assim!
Então, só há uma maneira de não ser mais assim...
Qual?
Você partir!
Mas eu não quero! Quero ficar com você! Eu te amo!
...
...
...
Querido, não quero te ver assim, eu também te amo!
Eu sei.Mas é tudo tão confuso...