Translate

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Os discursos dos dias




Herasmo Braga
Bem perceptível é a complexidade dos dias! Para melhor percepção desta situação, basta atentarmos, reflexivamente, para comparação do hoje com o ontem, ficando assim, a cargo de cada um, a sua avaliação se estas mudanças no cotidiano, nas relações e nas formações constituem algo bom ou ruim. Todavia, o fato que nos move nesta discussão consiste na observação de que muitos não estão devidamente preparados para os nossos dias.
Não é nada incomum depararmos com situações de exclusão, de intolerância, de racismo na nossa contemporaneidade. Comportamento estes que mesmo passados séculos de condenação, atravessam a nossa vivência e ganha mais força em nossos dias. As pessoas não temem mais o que não conhecem, e sim, o que sabem. Não se precisa de um notório saber para percebermos a necessária busca de equilíbrio entre os nossos mundos e dos outros.
Em nossos dias, discursos como a pluralidade de identidades ganham destaque. Entretanto, muitos não conseguem se relacionar tranquilamente com as possibilidades infinitas formativas. Alguns temem não serem aquilo que eles tenham imaginado ou os seus pais queriam. Assim, não conseguem conviver com o drama da frustração e se perdem no decorrer do trajeto. Exemplos concretos dessa incapacidade reflexiva e de consolidação autônoma advêm das entregas as drogas, as futilidades consumistas e até mesmo o suicídio. Não raro termos amigos enquadrados em algum meio vazio e tendo como fonte de preenchimento essas fugas e outras.
Foi-se se o tempo em que muitas garotas eram levadas a prostituição por necessidades até mesmo de sobrevivência. Outras por considerarem este projeto profissional como opção de vida que lhes parecesse mais confortável. Hoje, muitas delas se envolvem com a prostituição não pelo prazer da aventura ou do sexo, mas do dinheiro para realizarem os seus caprichos a serem estampadas e divulgadas perante os outros sujeitos vazios que se encantam e se envolvem no mundo fantasmático das marcas como sinônimo de poder, superioridade.
Outro aspecto discursivo recorrente é a questão da crise. Essa palavra tão propalada nos meios midiáticos, profissionais, acadêmicos, cotidianos e acaba se tornando como fonte orientadora dos dias e, consequentemente, das relações pessoais e interpessoais. Constituiu-se um negativismo excessivo e modista da palavra crise. Não se imagina ou não de discute as possibilidades de engrandecimento que ela acompanha, pois diante de determinadas situações somos levados a sair da zona de conforto e nos depararmos com ações e reflexões necessárias e novas. No entanto, diante de uma crise acontece de nos curvarmos aos negativismos apocalípticos divulgados e aceitos. Estar em crise e permanecer nela constituem ser até mesmo regra de etiqueta. Dizer que foi ao analista equivale a dizer em outrora que foi ao teatro ou a um conserto de música.
Muitos discursos e pouca orientação e formatividade. Esse constitui o dilema social de hoje. Antes de assumir qualquer atitude ou pensamento perante os outros se tem de refletir xadrizmente. Ver todos os encantos e desencantos. Se assumir e orgulhar-se de ser heterossexual é ser homofobico. Se glorificar a cultura do ser macho é porque em seu intimo paira o sentimento de ser mulher. Discursos, discursos e discursos. Rotulados, não vividos e não aceitos nas confusões dos nossos dias ditos democráticos.

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Uma história em quadrinhos: representatividades do hoje sobre o ontem




Herasmo Braga
Professor universitário

Não é de hoje que a história explora novos universos. Vários historiadores se debruçam sobre os mais variados temas, objetos e metodologias. Dentre deste universo de abordagens queremos destacar algumas relações entre as revistas em quadrinhos e a história.
É reconhecido por todos que, hoje, a subjetividade do historiador está mais presente em suas análises. Antes o que era tido como ingerência na investigação, agora funciona não só como complemento de estudo, como também, critério seletivo. Acreditamos que toda e qualquer produção humana tem de contribuir para a formação e desenvolvimento dos indivíduos. Assim, quanto mais amplo for esse conhecimento, associado à sensibilidade e experiência maior probabilidade de uma construção historiográfica significativa. Portanto, cabe ao historiador não só o manejo seco com os documentos, mas disponibilizar todo o capital cultural que ela possa vir a ter, pois isso possibilitará um melhor texto e um melhor tratamento do objeto em estudo. Todavia, não só esse cabedal intelectual e sensitivo fará a diferença. Reiteramos a necessidade do saber passar aos outros o conteúdo verticalizado, portanto, escrever com clareza, simplicidade e envolvimento será uma atitude de grande valia para a divulgação do conhecimento histórico.
À medida que homem se aprofunda e prolifera conhecimento, ele por vezes acaba constituindo inverdades. Dentro delas encontra-se de que ao analisar uma produção cultural o aspecto estético deve ser deixado de lado. A esteticidade ou a tradição cultural são ainda encaradas, por muitos, como mecanismo de exclusão da maioria. Esse pensamento vigora devido as possíveis dificuldades de acesso e entendimento das grandes obras. Entretanto, esse tipo de posicionamento deve ser refutado, pois a experiência estética diz muito dos contextos interno e externo das construções humanas. Portanto, cabe ao historiador ao erguer o seu andar sobre algo, deve levar em conta a grande importância que tem as formulações estéticas das produções artísticas, devido elas terem muito a dizer. Interessante, também, o historiador estar desprovido de suas amarras ou preconceitos sociais que teimam em elevar algumas produções artísticas e ridicularizar outras.
Assim, utilizar as revistas em quadrinhos como fonte de documentação histórica não constitui, a nosso ver, nenhum demérito, pois as produções artísticas desse gênero apesar das suas fortes ligações ideológicas e com a cultura de massa, descreve com qualidade os nossos momentos subjetivos. Podemos exemplificar esse tipo de atuação com as revistas que contam com a presença da personagem da Disney Margarida. A sua primeira aparição surgiu em junho de 1940 no desenho animado Mr. Duck StepsOut. A sua principal característica, apesar de ter uma personalidade forte diferentemente da maioria dos personagens até então, era de ser apenas uma coadjuvante das aventuras e desventuras do seu namorado Donald. Mas a partir de 1950 com Carl Barks é que começaram aparecer as próprias histórias da Margarida. A personagem feminina da Disney estava dotada das seguintes características: anotava em seus diários acontecimentos cômicos, analogias de romances idealizadores, situações de ciúmes e os seus hábitos consumistas e fúteis por ela vivenciadas. Sua maior ocupação era ser presidente do Clube Feminino de Patópolis em que organizava cursos de culinária, costura, bordado e eventos beneficentes.
Mas a partir da década de 80 Margarida começou a mudar. Em A Moda é Mudar (1986) ela decide resignificar não só o guarda-roupa, mas outros elementos. Com o tempo ela passa a somar em torno de si pensamentos e qualidades distintas dos anos anteriores. Margarida passa a ser uma cidadã-consciente, busca inserir-se no mercado de trabalho, passa a dar mais importância à aparência vista agora como valor. Põe de escanteio o estereótipo de sexo frágil e em seu relacionamento amoroso passa a ter agora sua iniciativa, independência e se ver em diversas situações em contradição constante com a personagem de outrora.
Concordamos com o discurso de Agda Dias Baeta expressa no livro Muito Além dos Quadrinhos (análises e reflexões sobre a 9ª arte) “não só a criatividade e o talento dos artistas foram fundamentais nesse processo, como a sintonia que possuíam com o ambiente social no qual estavam inseridos. A adequação dos personagens e dos enredos às experiências do mundo real são os fatores que resultaram no grande sucesso obtido junto ao público leitor”.
Assim o diálogo entre o texto e contexto é sempre fluido e constante. Deve o literato, o historiador perceber e saber ler essas conversas. Devendo desconstruir inverdades, desprovendo-se de limitações e preconceitos. Retirando e tratando sobre os pontos que venham a contribuir para as reflexões construtivas de hoje.

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

O contista Airton Sampaio



Herasmo Braga
Professor universitário

Na visão de alguns críticos brasileiros, a nossa literatura, quando comparada com outras mais tradicionais, apresenta-se de forma imatura. Falta-nos um pouco mais de tradição literária. Todavia, destacamos que o elemento fundamental para o engrandecimento literário nacional está diretamente relacionado com o tripé essencial da produção: autor, obra e leitor.
O nosso país, de características singulares, tem em sua conta alguns pontos que comprometem a nossa expansão cultural e econômica, como por exemplo, a escassez de leitores ativos e seletivos. Entre estes poucos leitores e produtores de qualidade literária, destacamos o contista Airton Sampaio, autor das obras Painel de sombras, Vencidos e Contos da Terra do Sol. Sem cometer exageros, podemos considerá-lo como o que melhor domina a técnica da narrativa curta em nosso meio. Leitor voraz e dedicado de Machado de Assis, Airton Sampaio sobressai aos demais pela profunda e refinada ironia presente em seus textos.
Apesar do nosso meio carente em que impera a preocupação em desqualificar os outros por motivos pessoais, ou se mostrar de maneira imatura como escritor ou crítico literário, mesmo faltando muitas vezes em suas considerações maior consistência literária ou aprofundamento teórico e prático para se desenvolver uma crítica de qualidade, Airton Sampaio se apresenta como exemplo de um escritor que desenvolve a sua escrita com paciência e primor. Desconsidera fatores secundários e levianos como belo letrismo ou as vaidades literárias. Através de uma estética realista, bem trabalhada e fundamentada, realiza denúncias e reflexões sobre as mazelas acometidas sobre nós, restabelecendo assim uma ligação forte da literatura com uma de suas funções que é de transformação de sujeitos, instituições, valores e mentalidades. Esse aspecto fica bem evidente, por exemplo, no conto Madalena exposto logo abaixo:
O vestido rasgado, o corpo sujo, o rosto retalhado, as mãos nos cabelos desgrenhados: Madalena nas ruas da infância. Quando ela passava, catando restos de comida dos lixos, os meninos a cercávamos e, atirando pedras, gritávamos:
– Madalena! tira! tira!
Madalena levantava a veste surrada, os meninos vibrávamos. André, o filho do bancário, ia a casa, trazia uma lata de doce. Madalena, morta de fome, seguia André, ou melhor, o doce. Pouco depois, nós e ela, o tamarineiro sobre.
Algazarra. Cada um queria primeiro. André botava moral, o doce é meu, dizia, o primeiro sou eu. Madalena, os olhos na lata de doce, deitava-se, abria as pernas, aí André, e outro, e outro, e eu...
No fim, Madalena exausta, arrasada, curvava-se sobre a lata de doce, comia avidamente. Depois, o estômago feliz, ficava a olhar pra gente com uns olhinhos tão meigos, com um sorriso tão puro, que eu voltava pra casa com uma dor no peito, um ódio de mim, dos homens, do mundo.
Um dia, a notícia: Madalena morrera. O padre recusou-se a encomendar o corpo, não tenho tempo, vou ao batizado de um filho de um deputado, como posso encomendar o corpo de uma mendiga, hein, como posso?
Enterraram-na sem caixão, num cemitério distante da cidade. Hoje, passado tanto tempo, ainda lembro-me de tudo com extrema, violenta nitidez. E sinto nojo dessa minha primeira lição de miséria.
A meu ver, este conto do Airton Sampaio é o que melhor reflete toda a sua criação rica e vigorosa. Uma produção que associa a tradição engajadora social e literária. Apresenta o olhar atento ao seu tempo. Na sua construção, não vemos uma produção de denúncia pela denúncia com uma linguagem panfletária, mas uma produção significativa, delimitada e, na economia da linguagem, promove a elevação da condição nossa humana e literária.

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Crônica aprendida no dia

Herasmo Braga
Professor universitário

Costumo dizer em sala de aula que inteligência não ficou para todo mundo. Diante do espanto e da indignação dos meus alunos, explico-me melhor: para ser inteligente tem-se de estar aberto para as possibilidades, atento ao que acontece próximo e perceptível das sensações, além de se dedicar a vida e aos livros. Para ser inteligente, portanto, devemos ter sensibilidade e reconhecimento do mérito.
O ato de viver seria fruto de uma grande injustiça se a alguns fosse dado saber e a outros não. Acredito que a todos fora disponibilizado pela natureza a nossa capacidade intelectiva, todavia, com o mau uso ou o não uso dela, acabamos por impossibilitar de viver mais e melhor. Hoje mais do que nunca a vigência da relação de homem, desejo, artificialidade, produto, consumo se apresenta de maneira intensa e sutil. Nossas relações se voltam para as representações em que o aparentar ter é melhor do que ser.
Infelizmente, temos vivido em uma sociedade de pessoas zumbis. Sujeitos que automatizaram o ato de realizar, pensar e sentir. Falta-nos uma melhor formação para que possamos acordar deste estágio e poder desfrutar dos instantes de felicidade que o viver nos permite.
Baumam em seu livro Amor Líquido se expressa: “quanto mais velho você é, mais saber que os pensamentos, embora possam parecer grandiosos, jamais serão grandes o suficiente para abarcara generosa prodigalidade da experiência humana, muito menos para explicá-la” é nessa interatividade intelectiva, sensitiva e humana que precisamos. Dentro de uma sociedade transitória, líquida, efêmera temos que aprofundar os laços e promover mais ramificações. Distanciar-se de fronteiras infrutíferas que tornam sapos alguns e reis os que vêem mal ou fingem. Dentro desta dialética do cosmopolitismo e do provincianismo romper rumores. Buscar a terceira margem como o homem do rio e não perder a capacidade de sonhar e buscar.
Assim, não ficar indiferente diante de uma tela de Van Gogh ou uma estátua grega do século V a.C., pois são para encontros/aprendizagens como esses que devemos ter desenvolvido pelo meio da inteligência a percepção sensitiva. É através dos apurados sentidos que temos nossos instantes de glória.
E não encararmos Sebastian Bach e tomá-lo como algo burguês ou feito exclusivamente para a elite, pois se assim fosse, Bach estaria silenciado. Poucas coisas são tão profundas e divinas que ouvir Bach. Nada se compara a ele.

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Não imaginava que seria tão ruim




Herasmo Braga

Não me diga nada! Não quero saber.
Entendo você. Sei que não é fácil, mas você já sabia disso.
Eu sei... É que agora... É muito pior quando você me falou. Sei lá é tudo muito confuso...
Arrependido?
Não, acho que não, mas meio confuso.
Você é novo tem muito que viver. Eu gosto de você, mas sei que não tenho esse direito.
Me deixa um pouquinho em paz, por favor?!
Tudo bem. Vou me deitar, o dia não foi fácil.
O que houve de diferente dos outros dias?
Nada! Todos os dias são difíceis... Não tem nada de moleza. O dinheiro que ganho é muito sofrido. Contrário do que muitos dizem por aí.
Amor deixa essa vida. Eu garanto o nosso sustento!
Não seja fantasioso. Você sabe que não é fácil eu largar tudo isso. E muito menos você garantir as nossas vidas.
Eu deixo a faculdade o que for preciso. Trabalharei os três turnos, mas não quero te ver continuar nisso.
Infelizmente, você já sabe que não é nada assim do que você disse. A vida é muito mais complexa e traiçoeira. Se eu aceitasse sua proposta estaríamos fadados a fome.
Mas eu não quero continuar assim!
Então, só há uma maneira de não ser mais assim...
Qual?
Você partir!
Mas eu não quero! Quero ficar com você! Eu te amo!
...
...
...
Querido, não quero te ver assim, eu também te amo!
Eu sei.Mas é tudo tão confuso...

segunda-feira, 13 de junho de 2011

A Sociedade Líquida: entrevista com Zygmunt Bauman Por: Folha de S.Paulo



Sociólogo polonês, Zygmunt Bauman é conhecido mundialmente por seu conceito de Modernidade líquida, em que as ideias de emancipação, individualidade, tempo/espaço, trabalho e comunidade estão propensas a mudar com rapidez e de forma imprevisível.

Zygmunt Bauman é convidado do Fronteiras do Pensamento 2011 nos dias 11 de julho (Porto Alegre) e 12 de julho (São Paulo). Conheça mais sobre a vida e a obra do pensador na entrevista concedida à Folha de S.Paulo.


Um renomado periódico espanhol referiu-se recentemente a Zygmunt Bauman (1927) como um dos poucos sociólogos contemporâneos "nos quais ainda se encontram ideias". Opinião semelhante é frequentemente exposta por críticos de várias partes do mundo quando refletem sobre o pensamento desse intelectual polonês radicado na Inglaterra desde 1971 e empenhado, há meio século, em "traduzir o mundo em textos", como diz um deles. Indiferente às fronteiras disciplinares, Bauman é um dos líderes da chamada "sociologia humanística".

De um lado, não se encontram em suas obras abstrações ou análises e levantamentos estatísticos, e, de outro, são ali aproveitadas quaisquer ideias e abordagens que possam ajudá-lo na tarefa de compreender a complexidade e diversidade da vida humana. Essa é uma das razões pelas quais Bauman tem muito a dizer para uma gama de leitores muito maior do que normalmente se espera de um trabalho de sociologia mais convencional, o que condiz com suas próprias ambições de atingir um público composto de pessoas comuns "se esforçando por ser humanas" num mundo mais e mais desumano. Como ele gosta de insistir, seu objetivo é mostrar a seus leitores que o mundo pode ser diferente e melhor do que é.

Autor prolífico e de renome internacional, pode-se dizer que sua fama e prolixidade aumentaram significativamente após sua aposentadoria, em 1990: 16 de seus 25 livros foram publicados após essa data e cinco obras dedicadas ao estudo de seu pensamento foram escritas nos últimos anos.

Descrito certa vez como "profeta da pós-modernidade" (com o que não concorda), por suas reflexões sobre as condições do mundo da "modernidade líquida", os temas abordados por Bauman tendem a ser amplos, variados e especialmente focalizados na vida cotidiana dos homens e mulheres comuns. Holocausto, globalização, sociedade de consumo, amor, comunidade, individualidade são algumas das questões de que trata, sempre salientando a dimensão ética e humanitária que deve nortear tudo o que diz respeito à condição humana. Preocupado com a sina dos oprimidos, Bauman é uma das vozes a permanentemente questionar a ação dos governos neoliberais que dão amplo apoio às forças do mercado ao mesmo tempo em que abdicam da responsabilidade de promover a justiça social.

Nascido na Posnânia em 1925, Bauman escapou dos horrores do Holocausto que aguardavam os judeus poloneses na Segunda Guerra, ao fugir com sua família para a Rússia em 1939. De lá voltou após a guerra, quando se filiou ao Partido Comunista, estudou na Universidade de Varsóvia e conheceu Janina, com quem está casado há 55 anos e com quem teve três filhas: Anna (matemática), Lydia (pintora) e Irena (arquiteta).

Confiantes e animados pelo sonho de criar uma sociedade mais justa e igualitária, Zygmunt e Janina ali estiveram a construir suas carreiras (ele como professor da Universidade de Varsóvia e, ela, como editora de enredos cinematográficos) e criar sua família, até que uma nova onda de anti-semitismo e repressão esmagou os seus sonhos e os forçou ao exílio. Após três anos em Israel, o convite a Bauman para ser chefe do departamento de sociologia da Universidade de Leeds os trouxe à Inglaterra, onde permanecem até hoje.

Bauman recebeu o Mais! em Leeds, na confortável casa onde mora desde que ali chegou, há mais de 30 anos. "Naquela época achei a cidade horrível, imunda", me disse Janina, comentando a mudança que ocorreu nos últimos tempos e que transformou Leeds, de um sujo centro industrial, em uma cidade bonita, verdejante e cheia de vida.

Folha de S. Paulo: O senhor já foi descrito como um "profeta da pós-modernidade" e os termos "pós-moderno" e "pósmodernidade" aparecem em títulos de quatro de seus livros. Estaria sugerindo que ocorreu uma mudança cultural e social significativa na última geração suficientemente grande para que falemos de um novo período da história?

Zygmunt Bauman: Uma das razões pelas quais passei a falar em "modernidade líquida" em vez de "pós-modernidade" (meus trabalhos mais recentes evitam esse termo) é que fiquei cansado de tentar esclarecer uma confusão semântica que não distingue sociologia pós-moderna de sociologia da pós-modernidade, entre "pós-modernismo" e "pós-modernidade". No meu vocabulário, "pós-modernidade" significa uma sociedade (ou, se se prefere, um tipo de condição humana), enquanto que "pós-modernismo" se refere a uma visão de mundo que pode surgir, mas não necessariamente da condição pós-moderna.

Procurei sempre enfatizar que, do mesmo modo que ser um ornitólogo não significa ser um pássaro, ser um sociólogo da pós-modernidade não significa ser um pós-modernista, o que definitivamente não sou. Ser um pós-modernista significa ter uma ideologia, uma percepção do mundo, uma determinada hierarquia de valores que, entre outras coisas, descarta a ideia de um tipo de regulamentação normativa da comunidade humana e assume que todos os tipos de vida humana se equivalem, que todas as sociedades são igualmente boas ou más; enfim, uma ideologia que se recusa a fazer julgamentos e a debater seriamente questões relativas a modos de vida viciosos e virtuosos, pois, no limite, acredita que não há nada a ser debatido. Isso é pós-modernismo.

Mas sempre estive interessado na sociologia da pós-modernidade, meu tema tem sempre sido compreender esse tipo curioso e em muitos sentidos misterioso de sociedade que vem surgindo ao nosso redor; e a vejo como uma condição que ainda se mantém eminentemente moderna nas suas ambições e no seu "modus operandi" (ou seja, no seu esforço de modernização compulsiva, obsessiva), mas que se acha desprovida das antigas ilusões de que o fim da jornada estava logo adiante.

É nesse sentido que pós-modernidade é, para mim, modernidade sem ilusões. Diferentemente da sociedade moderna anterior, a que eu chamo de modernidade sólida, que também estava sempre a desmontar a realidade herdada, a de agora não o faz com uma perspectiva de longa duração, com a intenção de torná-la melhor e novamente sólida. Tudo está agora sempre a ser permanentemente desmontado, mas sem perspectiva de nenhuma permanência.

Tudo é temporário. É por isso que sugeri a metáfora da "liquidez" para caracterizar o estado da sociedade moderna, que, como os líquidos, se caracteriza por uma incapacidade de manter a forma. Nossas instituições, quadros de referência, estilos de vida, crenças e convicções mudam antes que tenham tempo de se solidificar em costumes, hábitos e verdades "auto-evidentes". É verdade que a vida moderna foi desde o início "desenraizadora" e "derretia os sólidos e profanava os sagrados", como os jovens Marx e Engels notaram. Mas, enquanto no passado isso se fazia para ser novamente "reenraizado", agora as coisas todas - empregos, relacionamentos, know-hows etc. - tendem a permanecer em fluxo, voláteis, desreguladas, flexíveis.

Como um exemplo dessa perspectiva, li, num dia desses, que um famoso arquiteto de Los Angeles estava se propondo a construir casas que permanecessem lindas "para sempre". Ao ser questionado sobre o que queria dizer com isso, ele teria respondido: até daqui a 20 anos! Isso é hoje "para sempre", grande duração. O que me interessa é, portanto, tentar compreender quais as consequências dessa situação para a lógica do indivíduo, para seu cotidiano. Virtualmente todos os aspectos da vida humana são afetados quando se vive a cada momento sem que a perspectiva de longo prazo tenha mais sentido.

Jean-Paul Sartre aconselhou seus discípulos em todo o mundo a terem um projeto de vida, a decidir o que queriam ser e, a partir daí, implementar esse programa consistentemente, passo a passo, hora a hora. Ora, ter uma identidade fixa, como Sartre aconselhava, é hoje, nesse mundo fluido, uma decisão de certo modo suicida. Se se pensa, por exemplo, nos dados levantados por Richard Sennett [sociólogo] - o tempo médio de emprego no vale do Silício [localizado na Califórnia, EUA, concentra um grande número de empresas de tecnologia e internet], por exemplo, é de oito meses-, quem pode pensar num projeto de vida nessas circunstâncias?

Na época da modernidade sólida, quem entrasse como aprendiz nas fábricas da Renault ou Ford iria com toda probabilidade ter ali um longa carreira e se aposentar após 40 ou 45 anos. Hoje em dia, quem trabalha para Bill Gates por um salário talvez cem vezes maior não tem ideia do que poderá lhe acontecer dali a meio ano! E isso faz uma diferença incrível em todos os aspectos da vida humana.

Em Liquid Love [Amor Líquido], eu exploro o impacto dessa situação nas relações humanas, quando o indivíduo se vê diante de um dilema terrível: de um lado, ele precisa dos outros como do ar que respira, mas, ao mesmo tempo, ele tem medo de desenvolver relacionamentos mais profundos, que o imobilizem num mundo em permanente movimento.

Folha de S. Paulo: O Senhor poderia discutir os riscos da pós-modernidade?

Zygmunt Bauman: Uma das características do que eu chamo de "modernidade sólida" é a de que as maiores ameaças para a existência humana eram muito mais óbvias. Os perigos eram reais, palpáveis e não havia muito mistério sobre o que fazer para neutralizá-los ou, ao menos, aliviá-los. Era, por exemplo, óbvio que alimento - e só alimento - era o remédio para a fome.

Os riscos de hoje são de outra ordem, não se podendo sentir ou tocar em muitos deles, apesar de estarmos todos expostos, em algum grau, a suas consequências. Não podemos, por exemplo, cheirar, ouvir, ver ou tocar as condições climáticas que gradativamente, mas sem trégua, estão se deteriorando.

O mesmo acontece com os níveis de radiação e poluição, a diminuição das matérias-primas e fontes de energia não-renováveis e os processos de globalização sem controle político ou ético que solapam as bases de nossa existência e sobrecarregam a vida dos indivíduos com um grau de incerteza e ansiedade sem precedentes. É nesse ponto que a sociologia tem um papel importante a desempenhar.

Diferentemente dos perigos antigos, os riscos que envolvem a condição humana no mundo das dependências globais podem não só deixar de ser notados, mas também minimizados, mesmo quando notados. Do mesmo modo, as ações necessárias para exterminar ou limitar os riscos podem ser desviadas das verdadeiras fontes do perigo e canalizadas para alvos errados. Quando a complexidade da situação é descartada, fica fácil apontar para aquilo que está mais à mão como sendo causa das incertezas e ansiedades modernas.

Veja, por exemplo, o caso das manifestações contra imigrantes que ocorrem pela Europa. Vistos como "o inimigo" próximo, eles são apontados como os culpados pelas frustrações da sociedade, como aqueles que põem obstáculo aos projetos de vida dos demais cidadãos. A noção de "solicitante de asilo" adquire, nesse quadro, uma conotação negativa, ao mesmo tempo em que as leis que regem a imigração e naturalização se tornam mais restritivas, e a promessa de construção de "centros de detenção" para estrangeiros confere vantagens eleitorais a plataformas políticas.

Para confrontar sua condição existencial e enfrentar seus desafios, a humanidade precisa se colocar acima dos dados da experiência a que tem acesso enquanto indivíduos. Ou seja, a percepção individual, para ser ampliada, necessita da assistência de intérpretes munidos com dados não amplamente disponíveis à experiência individual. E a sociologia, enquanto parte integrante desse processo interpretativo - um processo em andamento e permanentemente inconclusivo-, constitui um empenho constante para ampliar os horizontes cognitivos dos indivíduos e uma voz potencialmente poderosa nesse diálogo sem fim com a condição humana.

Folha de S. Paulo: Em muitas partes de sua obra o senhor soa nostálgico, às vezes até mesmo do que chama de "modernidade sólida", quando a humanidade aparentemente era menos ansiosa e tinha uma vida mais estável e segura. Concorda com essa interpretação?

Zygmunt Bauman: Eu não diria isso. Não acredito que haja um progresso linear no que diz respeito à felicidade humana. Podemos dizer que, como um pêndulo, nos movemos de tempos mais felizes para tempos menos felizes e de menos felizes para mais felizes. Hoje temos medo e somos infelizes do mesmo modo como também tínhamos medo e éramos infelizes há cem anos, mas por razões diferentes. A modernidade sólida tinha um aspecto medonho: o espectro das botas dos soldados esmagando as faces humanas.

Virtualmente todo mundo, quer na esquerda ou na direita, assumia que a democracia, quando existia, era para hoje ou amanhã, mas que uma ditadura estava sempre à vista; no limite, o totalitarismo poderia sempre chegar e sacrificar a liberdade em nome da segurança e da estabilidade. De outro lado, como Sennett mostrou, a antiga condição de emprego poderia destruir a criatividade humana, as habilidades humanas, mas construía a vida humana, que podia ser planejada. Tanto os trabalhadores como os donos de fábrica sabiam muito bem que eles iriam se encontrar novamente amanhã, depois de amanhã, no ano seguinte, pois os dois lados dependiam um do outro.

Bem, nada disso existe hoje. Dificilmente um outro tipo de stalinismo voltará, e o pesadelo de hoje não é mais a bota dos soldados esmagando as faces humanas. Temos outros pesadelos. O chão onde piso pode, de repente, se abrir como num terremoto, sem que haja nada no que me segurar. A maioria das pessoas não pode planejar seu futuro por muito tempo adiante. Os acadêmicos são ainda umas das poucas pessoas que têm essa possibilidade. Na maioria dos empregos podemos ser demitidos sem uma palavra de alerta. Você chama isso de nostalgia? Não sei...

A questão é que, como já disse antes, aproximando-me dos meus 80 anos, não mais acredito que possa existir algo como uma sociedade perfeita. A vida é como um lençol muito curto: quando se cobre o nariz, os pés ficam frios, e, quando se cobrem os pés, o nariz fica gelado. Mas insisto em que a sociedade que obsessivamente se vê como não sendo suficientemente boa é a única definição que posso dar de uma boa sociedade.

Folha de S. Paulo: Quando e como o senhor abandonou o marxismo? Considera-se ainda um socialista?

Zygmunt Bauman: Nunca abandonei Marx, apesar de minha intoxicação pelo "marxismo realmente existente" ter sido, felizmente, breve; de fato, terminou bem cedo, no momento em que o vi como era: um imenso obstáculo para a recepção e manutenção da mensagem ética de Marx - de que a qualidade de uma sociedade deve ser testada pelo critério da justiça e fair play que regulamenta a coletividade humana.

Eu espero ter o direito de dizer que nunca abandonei essa crença. O mesmo se aplica ao meu socialismo, que, em meu entender, se resume à convicção de que, assim como o poder de carga de uma ponte se mede não pela força média de todos os pilares, mas pela força de seu pilar mais fraco, a qualidade de uma sociedade também não se mede pelo PIB (Produto Interno Bruto), pela renda média de sua população, mas pela qualidade de vida de seus membros mais fracos.

O socialismo para mim não é o nome de um tipo particular de sociedade. É, sim, exatamente como o postulado de Marx de justiça social, uma dor aguda e constante de consciência que nos impulsiona a corrigir ou remover variedades sucessivas de injustiça. Não acredito mais na possibilidade (e até no desejo) de uma "sociedade perfeita", mas acredito numa "boa sociedade", definida como a sociedade que se recrimina sem cessar por não ser suficientemente boa e não estar fazendo o suficiente para se tornar melhor...

Folha de S. Paulo: Quando se acompanha sua carreira, o senhor parece um filósofo que, devido às condições da Polônia do pós-guerra, foi temporariamente desviado de sua vocação, voltando-se para a sociologia. Concorda com essa descrição?

Zygmunt Bauman: Essa seria uma reconstrução justa do que realmente aconteceu e de como eu encarava a situação, mas com uma ressalva. Eu não era um filósofo profissional antes de ter me desviado para a sociologia, como você sugere; nem desejava me tornar um. Antes de me juntar ao Exército polonês e voltar para meu país natal por essa via, eu fiz dois anos de curso universitário de física por correspondência (na Rússia, os estrangeiros não tinham permissão de viver em cidades grandes, onde havia universidades).

Lembro-me de, como tantos adolescentes, me sentir um tanto apavorado e esmagado pelos mistérios e enigmas do universo e de desejar ardentemente dedicar minha vida a desvendar esses mistérios e a solucionar esses enigmas. Meus estudos foram, entretanto, interrompidos pelo apelo das armas quando eu tinha 18 anos, para jamais serem retomados.

Deixando o Exército em 1945, eu me vi novamente numa Polônia arruinada pela ocupação nazista, que se somava a um anterior legado de miséria, de desemprego em massa, de conflitos étnicos e religiosos aparentemente insolúveis e de exploração de classe brutal. Os desafios que meu país confrontava eram, pois, muito maiores do que os do resto da Europa, pois, além de reconstruir fábricas e casas destruídas, semear campos abandonados e colocar a economia de pé novamente, a Polônia exigia uma batalha exaustiva contra uma pobreza sedimentada e contra profundas divisões de classe; a abertura das oportunidades educativas também era tarefa urgente, já que até então estas haviam estado fechadas à grande maioria da nação.

Eu imagino que a crença de que a sociologia poderia melhorar a vida humana ao reformar o meio social no qual esta se conduzia era parte integral do "projeto de modernidade". Eu até mesmo diria que o projeto consistia exatamente nisso. Assim, as pessoas que estavam seriamente empenhadas em levar a sociedade a desenvolver condições mais desejáveis a fim de ser "moderna" - ou seja, mais humana e melhor estruturada para promover a felicidade e dignidade humanas - não titubeavam um instante sobre que tipo de conhecimento deveria ser mais urgentemente adquirido, dominado e colocado em prática.

Certamente teria que ser a "ciência da sociedade", a sociologia, a disciplina que surgira para servir ao "projeto de modernidade". Tal convicção sobre a missão da sociologia e tal fé em seu poder de realizar sua missão deve, sem dúvida, intrigar um leitor contemporâneo, mas somente porque vivemos hoje numa era diferente, quando o mantra do dia não é mais "salvação pela sociedade"; infelizmente o que se ouve agora, como homilias insistentes, é que devemos buscar soluções individuais para problemas produzidos socialmente e sofridos coletivamente.

Folha de S. Paulo: Como foi a experiência de viver no que o senhor descreveu como a "idade áurea", quando as "universidades polonesas tiraram o máximo de vantagem da liberdade ganha nas batalhas do "outubro polonês" [relativa abertura do regime comunista, ocorrida em 1956]"?

Zygmunt Bauman: Foi algo fascinante, diferente de qualquer outra universidade que conheci; diferente, diria, de qualquer vida universitária existente. Há situações de liberdade acadêmica praticamente sem limites, quando todos os tipos de Weltanchauungen [visões de mundo], estratégias de pesquisa, hierarquias de relevância e prioridades, estilos de se contar histórias se encontram, conversam e argumentam. E há também situações em que os sociólogos se movem pelo sentido de urgência, e não somente pela necessidade de completar dissertações a tempo e assegurar uma próxima promoção; urgência de dar sua própria contribuição para a batalha por uma sociedade melhor, mais hospitaleira aos seres humanos e à sua humanidade. E também por uma vocação, uma missão de só se dedicar a isso. O que foi peculiar na situação pós-outubro polonês foi que as duas situações emergiram ao mesmo tempo e continuaram durante algum tempo a coincidir e a se fertilizar reciprocamente.

Esse tipo de combinação entre sentimento de liberdade e de propósito é uma felicidade de que a maioria dos acadêmicos contemporâneos infelizmente carece, quer eles tenham ou não consciência do que estão perdendo. Na maioria dos lugares do mundo a liberdade de expressão acadêmica é completa ou quase completa, somente limitada pelos regulamentos e regras (muitas vezes penosas e até ridículas) da carreira e de outras invenções da burocracia universitária; mas, fora isso, as escolhas são deixadas inteiramente livres para cada um.

Há, no entanto, muito pouco sentido de propósito e particularmente pouco sentido da relevância de seu próprio trabalho para o mundo fora dos muros da academia, como se todos compartilhassem da sina da filosofia lamentada por Wittgenstein, de "deixar o mundo como é". Como muitos sociólogos americanos e também alguns europeus se queixam, os estudos sociais acadêmicos perderam qualquer ligação com a agenda pública. Parece haver poucos, se é que há algum freguês para os modelos de "boa sociedade", que costumava ser a preocupação central e o forte da sociologia com inclinações humanísticas.

As classes educadas não estão mais interessadas na tarefa de ilustração e de elevação espiritual do povo. Os intelectuais pararam, em grande parte, de se definir pela responsabilidade que têm para com "o povo", a nação e a humanidade.

Folha de S. Paulo: O Senhor se referiu aos "muros da academia" como um obstáculo para o pensamento livre. Há alguma esperança para as universidades?

Zygmunt Bauman: O que quer que as universidades façam, elas não conseguirão jamais pôr um fim à curiosidade humana, que talvez tenha que sair da academia para se satisfazer. Se se pensar nas limitações que a organização universitária hoje impõe ao desenvolvimento do pensamento livre, basta olhar para o que acontece com a filosofia e a sociologia tal como são praticadas nos departamentos universitários e em outros "locais de autoridade", ou seja, os lugares em que afirmações reconhecidas como pertencentes a uma dada disciplina podem ser feitas e de onde elas devem ser expressas para serem reconhecidas como tais. Nesse quadro, pois, a filosofia e a sociologia se ligam a interesses intelectuais, estilos de pensamento e modos de argumentação bastante diferentes.

Cada uma dessas duas disciplinas acadêmicas se pretende de posse de grupos distintos de "dados primários" e os processa, interpreta, verifica e refuta de maneiras diferentes. Dominar o cânon, tanto da sociologia quanto da filosofia, e adquirir credenciais oficialmente reconhecidas e confirmadas em cada uma delas toma todo o tempo dos estudantes universitários, e competência em uma dessas disciplinas acadêmicas é raramente exigida para se adquirir o grau na outra.

Posso entender a preocupação dos sociólogos acadêmicos com a circunscrição, as barreiras e a defesa de suas possessões contra os competidores que lutam pela obtenção do dinheiro das fundações e do governo; mas o que não podemos esquecer é que essa preocupação se origina na realidade da vida acadêmica, e não na lógica da experiência humana que a sociologia é chamada a servir.

Folha de S. Paulo: Quão difícil foi para o senhor se ajustar à cultura da Grã-Bretanha, para onde veio com mais de 40 anos?

Zygmunt Bauman: Ajustamento nunca ocupou um lugar prioritário no meu programa de vida. Nesse campo não fui além do básico, isto é, além de aprender o idioma local e me fazer compreensível, evitando os mais crassos "faux pas". Tal como me recordo, ao chegar à Grã-Bretanha não estava particularmente preocupado em esconder, sufocar ou erradicar minha idiossincrasia, em abandonar o que no meu modo de agir e pensar poderia parecer estranho aos nativos. Tornar-me como os outros e me dissolver no plano de fundo não me parecia tarefa nem possível nem especialmente atraente e nunca foi minha intenção.

Como eu via na época, o desafio estava em outro lugar: como revelar para os meus colegas e alunos britânicos o sentido das minhas diferenças e talvez induzi-los a achar algum interesse e uso no que era inicialmente alheio a eles.

"Ajustamento" sugere uma via de mão única. Ao contrário, eu pensava em termos de troca igualitária: o único meio de retribuir a hospitalidade dos meus anfitriões britânicos era oferecer a eles algo que não tinham ainda e não poderiam adquirir a não ser num encontro face a face com um pensamento e modo de agir alternativos; algo novo e diferente, que pudesse, eventualmente, enriquecê-los do mesmo modo que eu tenho me enriquecido com o meu encontro com o cotidiano britânico. Eu, na verdade, desejava ser aceito, mas aceito precisamente pelo que eu era, por minha dessemelhança.

Minha sorte foi que, com essa atitude, eu aterrissei e me estabeleci na Grã-Bretanha. Posso pensar em muitos países em que viver com tal atitude teria sido muito mais difícil e social e espiritualmente custoso. Se alguém deve ser um exilado ou estrangeiro, a Grã-Bretanha é o lugar certo para estar. Pode-se aí esperar boa vontade, tolerância e bastante hospitalidade, com a condição de não querer fingir que é inglês...

Folha de S. Paulo: Em sua obra o senhor se refere frequentemente a romances. O que acha que a literatura pode ensinar sobre a sociedade e sobre a condição humana? Mais especificamente, o senhor confessa ser Borges uma de suas grandes fontes inspiradoras. Poderia nos explicar no que um escritor que parece não tratar especificamente de questões sociais lhe é importante?

Zygmunt Bauman: Devo começar lembrando que meus professores na Polônia nunca se preocuparam com as diferenças entre "filosofia social" e "sociologia propriamente dita"; mas, acima de tudo, eles consideravam os romancistas e poetas como seus camaradas de armas, e não como competidores e, muito menos, como antagonistas.

Eu aprendi a considerar a sociologia como uma daquelas numerosas narrativas, de muitos estilos e gêneros, que recontam, após terem primeiramente processado e reinterpretado, a experiência humana de estar no mundo. A tarefa conjunta de tais narrativas era oferecer um insight mais profundo no modo como essa experiência foi construída e pensada e, desse modo, ajudar os seres humanos na sua luta pelo controle de seus destinos individuais e coletivos. Nessa tarefa, a narrativa sociológica não era "por direito" superior a outras narrativas, pois tinha que demonstrar e provar seu valor e utilidade pela qualidade de seu produto.

Eu, por exemplo, me lembro de ganhar de Tolstói, Balzac, Dickens, Dostoiévski, Kafka ou Thomas Morus muito mais insights sobre a substância das experiências humanas do que de centenas de relatórios de pesquisa sociológica. Acima de tudo aprendi a não perguntar de onde uma determinada ideia vem, mas somente como ela ajuda a iluminar as respostas humanas à sua condição, assunto tanto da sociologia quanto das belle lettres.

O que aprendi com Borges? Acima de tudo, aprendi sobre os limites de certas ilusões humanas: sobre a futilidade de sonhos de precisão total, de exatidão absoluta, de conhecimento completo, de informação exaustiva sobre tudo; sobre as ambições humanas que, no final, se revelam ilusórias e nos mostram impotentes. Lembremos, por exemplo, do conto de Borges que fala sobre o mapa: o sonho do mapa exato que acaba ficando do mesmo tamanho da própria coisa mapeada e, portanto, sem nenhuma utilidade. Não me ocorre nenhum filósofo ou sociólogo que pôde tratar de tais questões tão persuasivamente, tão convincentemente, tão espetacularmente.

Em parte isso se deve à posição muito luxuosa e mesmo invejável de nunca ter sido um acadêmico e de nunca ter estado submetido a uma disciplina. Fora dos muros da academia os romancistas desfrutam da liberdade que é negada, por exemplo, aos sociólogos profissionais, que têm seus trabalhos avaliados pela conformidade destes com os procedimentos que definem e distinguem a profissão, e não por sua relevância humana. Quando se envia um artigo a uma revista científica para ser avaliado por um "par", isso só tem um impacto: reduzir a originalidade ao denominador comum!

Borges nunca teve que se submeter a esse tipo de coisa. Note que os dois cientistas sociais da modernidade realmente interessantes e ainda hoje extremamente tópicos foram Karl Marx [1818-1883] e George Simmel [1858-1918], e eles têm também essa característica comum: ambos eram free-lancers e nenhum deles ensinou nas universidades! Mas, acima de tudo, a maior vantagem da narrativa dos romancistas é que ela se aproxima da experiência humana do que a maioria dos trabalhos das ciências sociais. Elas são capazes de reproduzir a não-determinação, a não-finalidade, a ambivalência obstinada e insidiosa da experiência humana e a ambiguidade de seu significado.

Folha de S. Paulo: O senhor tem sempre enfatizado a necessidade de todos nós "questionarmos ostensivamente as premissas de nosso modo de vida". Teria alguma sugestão a nos dar sobre as respostas a esses questionamentos?

Zygmunt Bauman: Maurice Blanchot [escritor e crítico francês, 1907-2003] disse certa vez, em palavras que ficaram famosas, que as respostas são a má sorte das perguntas. De fato, cada resposta implica fechamento, fim da estrada, fim da conversa. Também sugere nitidez, harmonia, elegância; enfim, qualidades que o mundo narrado não possui. Tenta forçar o mundo numa camisa de força na qual ele definitivamente não cabe. Corta as opções, a multidão de sentidos e possibilidades que toda condição humana implica a cada momento. Promete falsamente uma solução simples para uma busca provocada e impelida pela complexidade. Também mente, pois declara que as contradições e incompatibilidades que provocam as questões são fantasmas - efeitos de erros linguísticos ou lógicos, em vez de qualidades endêmicas e irremovíveis da condição humana.

Creio que a experiência humana é mais rica do que qualquer de suas interpretações, pois nenhuma delas, por mais genial e "compreensiva" que seja, pode exauri-la. Aqueles que embarcam numa vida de conversação com a experiência humana deveriam abandonar todos os sonhos de um fim tranquilo de viagem. Essa viagem não tem um final feliz - toda sua felicidade se encontra na própria jornada.

Folha de S. Paulo: O senhor descreveu modestamente um de seus livros mais recentes como um discussion paper. Diria que é por acaso ou propositadamente que tem se dedicado a escrever ensaios?

Zygmunt Bauman: No curso de meio século de estudos e de escrita nunca consegui adquirir a habilidade de terminar um livro... Com o passar do tempo, eu reconheço que todos os meus livros foram entregues ao editor inacabados.

Em regra, antes mesmo que o manuscrito seja impresso, fica claro para mim que o que me parecia havia pouco como "o fim" era, de fato, um começo com uma sequência desconhecida, mas tremendamente necessária. Por trás de cada resposta percebo que novas questões estão piscando; que mais, muito mais, restou a ser explorado e compreendido e quão pouco, de fato, foi revelado pelo "acabamento bem-sucedido" das explorações passadas. As perguntas mais intrigantes e provocantes emergem, via de regra, após as respostas.

No decurso dos anos aprendi a apreciar a queixa de Adorno [filósofo alemão, 1903-69] sobre a convenção linear da nossa escrita: por causa dessa convenção nós não conseguimos transmitir a lógica do pensamento que, diferentemente da escrita, se move em círculos e está invariavelmente forçada, pelo seu próprio progresso, a fazer perpétuos retornos.

Entrevista concedida à Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke, professora aposentada da USP e pesquisadora associada do Centro de Estudos Latino-Americanos da Universidade de Cambridge (Reino Unido), para a Folha de S. Paulo (19 de outubro de 2003)

Link: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1910200305.htm

sábado, 14 de maio de 2011

Sobre os perigos da leitura

Rubem Alves


Nos tempos em que eu era professor da UNICAMP fui designado presidente da comissão encarregada da seleção dos candidatos ao doutoramento, o que é um sofrimento. Dizer “esse entra”, “esse não entra” é uma responsabilidade dolorida da qual não se sai sem sentimentos de culpa. Como, em vinte minutos de conversa, decidir sobre a vida de uma pessoa amedrontada? Mas não havia alternativas. Essa era a regra.

Os candidatos amontoavam-se no corredor recordando o que haviam lido da imensa lista de livros cuja leitura era exigida. Aí tive uma idéia que julguei brilhante.

Combinei com os meus colegas que faríamos a todos os candidatos uma única pergunta, a mesma pergunta. Assim, quando o candidato entrava trêmulo e se esforçando por parecer confiante, eu lhe fazia a pergunta, a mais deliciosa de todas: “Fale-nos sobre aquilo que você gostaria de falar!” Pois é claro! Não nos interessávamos por aquilo que ele havia memorizado dos livros. Muitos idiotas têm boa memória. Interessávamos por aquilo que ele pensava.

Poderia falar sobre o que quisesse, desde que fosse aquilo sobre que gostaria de falar. Procurávamos as idéias que corriam no seu sangue! Mas a reação dos candidatos não foi a esperada. Foi o oposto. Pânico. Foi como se esse campo, aquilo sobre que eles gostariam de falar, lhes fosse totalmente desconhecido, um vazio imenso. Papaguear os pensamentos dos outros, tudo bem. Para isso eles haviam sido treinados durante toda a sua carreira escolar, a partir da infância. Mas falar sobre os próprios pensamentos – ah! isso não lhes tinha sido ensinado.

Na verdade nunca lhes havia passado pela cabeça que alguém pudesse se interessar por aquilo que estavam pensando. Nunca lhes havia passado pela cabeça que os seus pensamentos pudessem ser importantes. Uma candidata teve um surto e começou a papaguear compulsivamente a teoria de um autor marxista. Acho que ela pensou que aquela pergunta não era para valer.

Não era possível que estivéssemos falando a sério. Deveria ser uma dessas “pegadinhas” sádicas cujo objetivo e confundir o candidato. Por vias das dúvidas ela optou pelo caminho tradicional e tratou de demonstrar que ela havia lido a bibliografia. Aí eu a interrompi e lhe disse: “ Eu já li esse livro. Eu sei o que está escrito nele. E você está repetindo direitinho. Mas nós não queremos ouvir o que já sabemos. Queremos ouvir o que não sabemos. Queremos que você nos conte o que você está pensando, os pensamentos que a ocupam…” Ela não conseguiu. O excesso de leitura a havia feito esquecer e desaprender a arte de pensar.

Parece que esse processo de destruição do pensamento individual é uma consequência natural das nossas práticas educativas. Quanto mais se é obrigado a ler, menos se pensa. Schopenhauer tomou consciência disso e o disse de maneira muito simples em alguns textos sobre livros e leitura. O que se toma por óbvio e evidente é que o pensamento está diretamente ligado ao número de livros lidos. Tanto assim que se criaram técnicas de leitura dinâmica que permitem que se leia “Grande Sertão – Veredas” em pouco mais de três horas.

Ler dinamicamente, como se sabe, é essencial para se preparar para o vestibular e para fazer os clássicos “fichamentos” exigidos pelos professores. Schopenhauer pensa o contrário: “ É por isso que, no que se refere a nossas leituras, a arte de não ler é sumamente importante.” Isso contraria tudo o que se tem como verdadeiro e é preciso seguir o seu pensamento. Diz ele: “Quando lemos, outra pessoa pensa por nós: só repetimos o seu processo mental.”

Quanto a isso, não há dúvidas: se pensamos os nossos pensamentos enquanto lemos, na verdade não lemos. Nossa atenção não está no texto. Ele continua: “Durante a leitura nossa cabeça é apenas o campo de batalha de pensamentos alheios. Quando esses, finalmente, se retiram, o que resta? Daí se segue que aquele que lê muito e quase o diz inteiro … perde, paulatinamente, a capacidade de pensar por conta própria… Este, no entanto, é o caso de muitos eruditos: leram até ficar estúpidos. Porque a leitura contínua, retomada a todo instante, paralisa o espírito ainda mais que um trabalho manual contínuo…”

Nietzsche pensava o mesmo e chegou a afirmar que, nos seus dias, os eruditos só faziam uma coisa: passar as páginas dos livros. E com isso haviam perdido a capacidade de pensar por si mesmos. “Se não estão virando as páginas de um livro eles não conseguem pensar. Sempre que se dizem pensando eles estão, na realidade, simplesmente respondendo a um estímulo, – o pensamento que leram… Na verdade eles não pensam; eles reagem. (…) Vi isso com meus próprios olhos: pessoas bem dotadas que, aos trinta anos, haviam se arruinado de tanto ler. De manhã cedo, quando o dia nasce, quando tudo está nascendo – ler um livro é simplesmente algo depravado…”

E, no entanto, eu me daria por feliz se as nossas escolas ensinassem uma única coisa: o prazer de ler! Sobre isso falaremos…

domingo, 8 de maio de 2011

Comentário do texto de Llosa

Para Mario Vagas Llosa, apud, Sônia Montano a cultura "sempre significou a soma dos fatores e das disciplinas que a constituíam: a reivindicação de novas ideias, valores, conhecimento históricos, religiosos, filosóficos e científicos, bem como o fomento de novas formas artísticas e campos do saber".
Percebamos que a opinião de Llosa sobre cultura é bem ampla e que esta é regida pela qualidade e baseada nas letras e nas artes. Contudo, seguindo essa linha de raciocínio Llosa acabar por excluir a cultura popular, chegando a afirmar, segundo Montano, que os sociólogos teriam incorporado a "incultura" à ideia de cultura, camuflada na cultura popular.
Mas, a cultura popular também é formada por valores, conhecimentos históricos e religiosos, da mesma forma que a cultura defendida por ele. Llosa com sua noção de cultura, parece querer lançar um Cânone cultural, o que acabaria por aprofundar ainda mais as desigualdades dentro da sociedade. Afinal a cultura, conforme José Luiz dos Santos, também é uma forma de dominação.

Moisés VI bloco (uespi)

Comentário do texto de Llosa

Com relação à conferência do escritor peruano Mario Vargas Llosa sobre o conceito de cultura, e fazendo uma crítica aos rumos dados a esse conceito levando-se em conta a ampliação do seu significado tido na idade média até os dias atuais, uma grande mudança pode ser percebida, seu conceito foi se transformando se alargando de tal forma que para Llosa se esvaiu, tomou uma proporção que tudo hoje em dia pode ser visto como cultura.
Concordo perfeitamente com a opinião do escritor, partindo do pressuposto que tudo o que é construído é cultura não levando em conta a maneira como ela é vista e transformada, seja ela de maneira positiva ou não ela é aceita como cultura. Muitos pensadores acreditam e afirmam que existe cultura menos importante do que a outra, o que não é verdade, para mudarmos essa realidade cabe aos intelectuais mudar essa concepção garantindo melhores oportunidades através do saber e assim aperfeiçoar o progresso intelectual de cada ser, a cultura é um suporte para o conhecimento.

Maisa Lopes de Sales LETRAS/PORTUQUÊS VI UESPI

domingo, 1 de maio de 2011

Comentário do texto de Mário Vargas Llosa por Cinthya Fontinele Melo

Partindo do conceito primeiramente definido por Edward Tylor que diz que cultura é “Todo complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade”, concordo plenamente quando o autor diz que “hoje, todos somos cultos, embora muitos nunca tenham sequer lido um livro ou assistido a um concerto”, pois muitos se equivocam ao pensar que somente são cultas as pessoas que entendem sobre determinados assuntos, como por exemplo: filosofia, política, moda. Todas as culturas têm a sua devida importância para os membros da qual fazem parte, e devem ser respeitadas, pois contribuem para a diversidade da civilização humana.

Att,

Cinthya F. Melo (Chrisfapi)

segunda-feira, 25 de abril de 2011

Participe!!!!! do debate (I)

Leia o texto de Mário Vargas Llosa sobre cultura e envie seu comentário ou outro texto sobre o tema para o e-mail herasmobraga@yahoo.com.br para postagem.

Forum de debate (I) Cultura

Mario Vargas Llosa e o discurso sobre a cultura

Por Sonia Montaño

Mario Vargas Llosa foi aplaudido de pé ao entrar no palco do Fronteiras doPensamento na noite de 14 de outubro. Com o Salão de Atos da UFRGS totalmenterepleto, o Nobel de Literatura 2010 iniciou sua conferência agradecendo o carinho do público do Fronteiras que, segundo as palavras do próprio autor, recebe tão ilustrespensadores e artistas.
O escritor peruano dedicou sua conferência à noção de "cultura", fazendo uma crítica aos rumos dados a esse conceito graças à antropologia, à sociologia e ao pensamento dos intelectuais pós-modernos como Michel Foucault e Jacques Derrida, aos quais fez duras considerações. Para Vargas Llosa, a noção de cultura foi adquirindo diversos significados e matizes ao longo da história: ela já foi inseparável da religião, da filosofia grega e do direito romano. No Renascimento, a "cultura" era impregnada de literatura e artes; e, com o Iluminismo, ela foi finalmente associada ao conhecimento científico.
A noção de cultura apesar dessas variações históricas, Llosa defendeu que "cultura" sempre significou a soma dos fatores e das disciplinas que a constituíam: a reivindicação de novas ideias, valores, conhecimentos históricos, religiosos, filosóficos e científicos, bem como o fomento de novas formas artísticas e campos do saber. A cultura sempre estabeleceu hierarquias sociais entre quem a enriquecia e a fazia progredir e quem a desprezava ou era excluído por razões sociais e econômicas. “Em uma sociedade, em todas as épocas históricas, havia pessoas cultas e incultas e, entre ambos os extremos, pessoas mais ou menos cultas ou mais ou menos incultas. Essa classificação ficava bastante clara em um mundo onde tudo era regido por um mesmo sistema de valores, critérios culturais e maneiras de julgar, pensar e se comportar”, disse o peruano. Para Llosa, a noção de cultura atual se estendeu tanto, que se esvaiu.
Assim, "hoje, todos somos cultos, embora muitos nunca tenham sequer lido um livro ou assistido a um concerto."
Mario Vargas Llosa aponta a antropologia, dentre outras áreas, como aquela responsável pela confusão em que a noção de cultura se encontra. Os antropólogos, inspirados pela melhor fé do mundo, numa vontade de compreensão das sociedades mais primitivas que estudavam, estabeleceram que "cultura" era a soma de crenças, conhecimentos, linguagens, costumes, sistemas de parentescos e usos. Ou seja, tudo aquilo que um povo faz, diz, teme ou adora. “Essa definição buscava, entre outras coisas, sair do etnocentrismo racista daquilo que o Ocidente não se cansa de se acusar. O propósito não podia ser mais generoso, mas sabemos que o inferno está cheio de boas intenções”, ironizou o conferencista. Segundo ele, uma coisa é crer que todas as culturas merecem consideração, já que, sem dúvida, em todas elas há contribuições positivas à civilização humana. Outra coisa é crer que elas, pelo simples fato de existirem, se equivalem.
A cultura popular para o escritor, foi a busca do politicamente correto que terminou por nos convencer de que é arrogante, dogmático, colonialista e até racista falar em culturas inferiores e superiores, modernas e primitivas. Conforme essa crença, todas são iguais - expressões equivalentes da maravilhosa diversidade humana.
Por sua parte, os sociólogos, empenhados em fazer crítica literária, teriam incorporado a "incultura" à ideia de cultura, disfarçada com o nome de "cultura popular". O conferencista lembrou a obra do autor russo Mikhail Bakhtin dedicada à cultura popular na Idade Média e no Renascimento. Bakhtin via a cultura popular como um tipo de contraponto à cultura aristocrática, que brota dos salões, conventos, palácios e bibliotecas. A cultura popular nasce e vive na rua, na taberna, na festa, no carnaval, e, mais ainda, satiriza a aristocracia. Bakhtin e seus seguidores aboliram, segundo Vargas Llosa, as fronteiras entre cultura e incultura e deram ao inculto uma dignidade relevante.
“Como falar, então, em um mundo sem cultura numa época em que naves construídas pelo homem chegaram às estrelas e a percentagem de analfabetos é a mais baixa de todo o acontecer humano?”, questionou o conferencista, chamando a atenção para o fato de que o número de alfabetizados é quantitativo, enquanto a cultura é qualidade, não quantidade. Llosa também advertiu que é atual a capacidade de reunirmos armas de destruição massiva que podem acabar com o planeta, mas que isso está mais próximo da barbárie do que da cultura.
O especialista foi definido pelo escritor como um ser unidimensional que pode ser, ao mesmo tempo, um grande especialista e um inculto, porque seus conhecimentos, em vez de o conectarem com os outros, isola-o numa especialidade, que é uma cela no domínio do saber.
As minorias cultas, conforme Vargas Llosa, tinham a missão de estender pontes entre as áreas do saber e de exercer influência religiosa ou leiga para o progresso intelectual, garantindo melhores oportunidades e condições materiais de vida. “Elliot dizia que não se deve identificar cultura com conhecimento. A cultura dá sustento ao conhecimento e o precede, imprime-lhe uma funcionalidade precisa”, defendeu o Nobel de Literatura.
Artes e letras no processo da cultura, para ele, seria equivocado atribuir funções idênticas às letras, às ciências e às artes. A ciência avança aniquilando o velho, antiquado e obsoleto. Para ela, o passado é um cemitério, um mundo de coisas mortas e superadas pelas novas descobertas e invenções. As letras e as artes se renovam, mas não se fundamentam no progresso, não aniquilam seu passado, alimentam-se dele e o alimentam. “Cervantes segue sendo tão atual quanto Borges, Velázquez está tão vivo quanto Picasso”, exemplificou o escritor.
Isso não quer dizer que a literatura, a música e a arte não mudem e evoluam, mas não suprimem nem superam. A obra artística e literária, aquela que alcança certo grau de excelência, não morre com o tempo – segue vivendo e enriquecendo as novas gerações e evoluindo. É por isso que criavam um espaço de comunicação entre seres humanos de diversas gerações. “Letras e artes constituíram o denominador comum da cultura”, disse o escritor.
No campo da cultura, Mario Vargas Llosa confessou preocupação particular com a educação. Atualmente, nas escolas, docentes ou quaisquer outras formas de autoridade parecem ter convertido os colégios em instituições caóticas e com concentração de precoces delinquentes. Para o autor, Maio de 68 não acabou com a autoridade, que já vinha sofrendo um enfraquecimento generalizado em todas as ordens, do político ao cultural. “Os adolescentes provindos das classes burguesas privilegiadas da França, que protagonizaram aquele divertido carnaval, que proclamou ‘É proibido proibir’, estenderam ao conceito de autoridade seu atestado de óbito”, disse o conferencista. Para ele, isso teria dado legitimidade e glamour à ideia de que toda autoridade é suspeita, perniciosa e detestável e que o mais nobre e libertário é desconhecê-la e destruí-la. “O poder não se viu nem um pouco afetado com essa audácia dos jovens rebeldes que, sem saber, levaram às barricadas os ideais iconoclastas de pensadores como Michel Foucault e Jacques Derrida. A autoridade no sentido romano, não de poder, senão de prestígio e crédito, que reconhece a uma pessoa ou instituição por sua qualidade ou competência, não voltou a reviver”, lamentou o escritor, lembrando que são poucas as figuras que exercem esse papel do exemplo moral e, ao mesmo tempo, da autoridade clássica.
Mario Vargas Llosa encerrou sua conferência defendendo que um bom livro nos aproxima da existência humana e de seus mistérios. “Os livros ajudam a viver. A cultura pode ser experimento de reflexão, pensamento e sonho, paixão e poesia. É uma revisão crítica constante e profunda de todas as certezas, convicções, teorias e crenças”, concluiu o convidado.

domingo, 3 de abril de 2011


Paul Gauguin

A perfomace da mente através do corpo

Herasmo Braga
Recentemente tivemos a perda do escritor Moacir Sclyar. Além de já ter produzido diversas obras significativas, ao nosso ver, ele teria muito mais a contribuir. Sua perda sentida no meio intelectual nos fez refletir numa relação meio inversamente proporcional entre o corpo e a mente na sociedade moderna.
Não é de hoje que muitos intelectuais secundarizam a proteção e os cuidados com o corpo. Associam o olhar para o aspecto físico como algo alienante, superfulo. Todavia, se observarmos a imagem que nos chegaram de grandes pensadores da grécia antiga veremos em Socrátes, Platão e Aristóteles sujeitos não só de mentes brilhantes, mas corpos de perfomace atléticas. Interpretamos com essas imagens que o cuidado devir com o corpo faz-se necessário para o desempenho melhor das atividades intelectivas.
Se observamos em meio a nosso nicho intelectual seja ele academico ou não perceberemos que poucos são os radiadores de ideias que não sejam obesos.
Em meio a tantas atribuições do cotidiano nos perdemos entre no que é preciso e necessário do poderia ficar para depois. Exemplo desse tipo são os hábitos do consumo. Poucas vezes deixamos para depois a compra de um produto, todavia se procurarmos atitudes do melhor viver ou adiamos, ou limitamos. Se estamos com problemas emocionais que nada que um processo de amadurecimento fruto da experiências da vida não resolva optamos por comprar materiais de auto-ajuda acreditando encontrar nestes textos as respostas para os nossos dilemas. Se precisamos emagrecer em vez de nos darmos com a pressão de reconstituir novos hábitos alimetares procuramos a solução em medicamentos milagrosos e nocivos a saúde. Assim vamos caminhando para atitudes que venham a comprometer nosso processo de aprendizagem e de contribuição em nosso meio limitando ou interropendo processos.

sexta-feira, 4 de março de 2011

O desafio de ser pós-moderno na antessala


Herasmo Braga
Se há algo que esteja tão presente nas prateleiras de livrarias, nas rodas de conversas, nas conferências, tanto quanto os livros de receitas de auto-ajuda são as obras que discutem a modernidade ou mais precisamente a pós-modernidade. Há inúmeros autores que se debruçam sobre essa discussão em todo o mundo, principalmente nos países periféricos. Afirmações do tipo eu sou moderno, ou anti-moderno, ou pós-moderno são constantes. As relações intelectuais e até mesmo afetivas parecem ser conduzidas interpretativamente por estes vetores.
Esse tema, bastante explorado – e não é de hoje – já se encontra de maneira gasta. Entre os elos das inúmeras discussões destacamos os seus muitos dizeres pouco ou nada fundamentados. Temas como fragmentação, discurso, identidade, subjetividade são marcas constantes nestas produções com um toque sempre supervalorizativo de ares da mais recente novidade.
Todavia, aqueles que atentarem minimamente de maneira reflexiva, perceberão que, dentro das construções, criações e realizações humanas a fragmentação, a pluri-linguagem, a subjetividade, as multi-identidades estiveram sempre permeando as ações interpretativas e produtivas do homem. Portanto, tratar desses aspectos como fenômenos sociais recentes, marcas divisórias da história da humanidade e fator decisivo de uma condição pós-moderna, constitui, a nosso ver, um mero trabalho de marketing dos intérpretes sociais de hoje. Não queremos com estas afirmações negar ou diminuir a importância das mudanças aceleradas que vêm acontecendo nos últimos 90 anos. Há, sim, inúmeras questões que têm se apresentado e mudado a rota de diversos indivíduos constantemente. E dentro destas mudanças destacamos: o distanciamento dos aspectos tradicionais, a banalização das referências, a descrença no conjunto, a diminuição das possibilidades de caminhos, a esclerose das ideias, a consolidação dos discursos vazios e o domínio pleno da mercadoria.
Grandes autores com grandes ideias têm perdido espaço e importância para outros que conseguem adequar melhor os seus discursos aos momentos fantasiosos dos dias de hoje. Leitores e provedores da necessidade de se estar sempre em contato com a tradição têm sido cada vez menos conhecidos e reconhecidos pela massa mais jovem. Indivíduos do porte de Harold Blomm, Beatriz Sarlo, Marshall Berman, Antônio Cândido, Luiz Costa Lima, Fernando Novais, Sérgio Paulo Rouanet, Raymmond Williams entre outros são cada vez menos presentes nas prateleiras das livrarias e nas estantes de livros dos estudantes. Parece-nos que uma das características da moda pós-modernidade é deixar de lado a tradição e se debruçar apenas no topo da pirâmide do pensamento humano. Não que esse topo reflita o melhor momento da história do pensamento, o essencial, mas apenas reflete o limitado mundo receituário do ser pós-moderno.
Reconhecemos que esse momento que nos tem levado a criar esse ostracismo para a tradição cultural e intelectual humana não brotou do acaso nem ocorreu impulsionadamente. Ele foi devidamente preparado para o seu devir histórico. Utilizando-se para isto somente observações da realidade e da junção de ideias, como por exemplo, a ideia da morte de Deus, o fim da autoridade do pai, o discurso de se extinguir valores que, segundo alguns autores dos estudos culturais de hoje, foram formados por um sujeito homem, branco, heterossexual, burguês, católico, machista e europeu. Soma-se a isso a valorização do inconsciente e algumas correntes do movimento feminista em que se objetivou tirar o homem do centro e se colocar uma mulher no seu lugar, todas essas linhas de pensamento provocaram a total descrença na tradição e nos seus valores.
Com todas essas ações não só a tradição se fragilizou, mas o homem também. Como produto disso, iniciou-se então um processo de desraizamento, da perda das referências, do desamparo e que tem como sintomas esse vasto campo vazio de ideias, posicionamentos e crítica.
Assim “suar a camisa” para ler e refletir sobre autores do porte de Marcel Proust, Joyce, Guimarães Rosa não constitui uma atividade agradável ou mesmo necessária para um sujeito pós-moderno. Realizar leituras resumidas disponíveis na internet para ter um ar de intelectualidade no meio social é bem mais valorativo e necessário. Além disso, como afirma em alguns momentos Pierre Bayard na obra Como falar dos livros que não lemos? É melhor se desenvolver uma performance teatral de profundo conhecedor de um vasto campo de obras e autores diante dos outros sujeitos pós-modernos do que se limitar na leitura real de poucas produções. Devemos assim, obrigatoriamente, situarmos sobre elas. Essa é uma situação típica da pós-modernidade.
Não queremos ser maniqueístas com a modernidade e pós-modernidade, mas sim, promover discussões que nos sirvam de reflexões e referências para a nossa constituição social e intelectual.

domingo, 23 de janeiro de 2011

Conversa entre amigos: Poesia (I)


Herasmo Braga
Receber amigos é algo que agrada qualquer individuo. Seja para uma simples visita, confraternização ou mesmo em certos momentos delicados da vida. Tão importante e prazeroso quanto a sua chegada são as conversas. Atualizar questões, debater assuntos dos mais diversos é um exercício não só de convivência, mas também de inteligência.
Em uma destas visitas eis que surge a pergunta o que é poesia? Todos nós tentamos das mais variadas formas sustentar uma resposta completa e didática, no entanto, diante do olhar de não entendimento, desisitimos. A poesia não só é algo complexo para se produzir, interpretar, mas também conceituar. No desenvolver das nossas conversas o tema poético foi sendo desenvolvido e aprofundado.
Entre os temas poéticos destacado foi sobre a primeira geração de literatos no Piauí. Todos reconheceram a grandiosidade desta primeira geração de intelectuais piauienses, surgida no final do século XIX e início do século XX. Nomes como Clodoaldo Freitas, Hignio Cunha, Abdias Neves, Lucídio Freitas, Da Costa e Silva são nomes marcantes não só nas nossas letras como também grandes formentadores culturais da província naquele momento. Esta geração marcou não só o surgimento de uma valiosa geração de intelectuais, como também, a mais bela e profunda geração de intelectuais até os nossos dias. Eles souberam como poucos dialogar a tradição com o momento presente. Realizaram leituras verticalizadas sobre uma gama dos mais refinados mestre das artes e não deixaram a desejar nada em relação as outras geradas nos mais diversos estados brasileiros. Todavia, mediante a um processo natural ocorreu a substituição dela.
Assim, nos anos vindoros deste processo analisamos hoje que o brilhantismo de antes não se sustentou. Poucos se destacaram como por exemplo, após quase 50 anos, tivemos dois individuos de grande potencial que em muito se assemelhavam na seriedade e no talento intelectual e cultural a grande geração primeira. As notáveis figuras surgidas nesse momento foram: H.Dobal e O.G. Rego de Carvalho.
Mas, os anos se passaram e a formação de um grupo tão qualificado como os primeiros não se firmava. Não surgiram, portanto, tão grandes nomes ou grandes obras nem dentro e nem fora da Academia Piauiense de Letras. O que ocorria nesta momento como até os dias presentes foram e são brigas de egos através de produções literárias de qualidades irregulares e teorização ou diálogo com os clássicos feitas superficialmente.
Advertimos, no entanto, que não pretendemos com estas questões ser reducionistas, mas apenas promover o debater em um texto curto - de maneira responsável - algumas observações sobre a produção literária em um primeiro momento do gênero poético no Piauí, em especial em Teresina nos ultimos anos .
Dentro das mais recentes produções podemos desenvolver de maneria didática duas matrizes. A primeira situamos em um fazer poético muito mais associado a uma interpretação não bem desenvolvida dos clássicos. Observamos que a partir dessas construções tivemos a elaboração de poemas com sentidos e procedimentos poéticos deficientes. Claro que no meio deste celeiro podemos encontrar algumas raras agulhas, mas no geral há muito mais feno.
Se de um lado tinhamos os interpretes deficientes que confundiam produção poética com interpretação apressada dos clássicos, ou mais especificamente, reconstrução deficitárias dos poemas; por outro tivemos a construção de poemas planfetários. Esses poemas ganharam força e projeção durante um forte período histórico de repressão e censura. Após esse momento histórico por carência nossa, tornaram-se mitos e foram cultuados pelo saudosismo de plantão do tempo presente. E hoje estas produções e, outras mais recentes, estão sob a égide dos teóricos da academia universitária, estão cobertos diante de uma linha denominada Estudos Culturais. Portanto, outros poetas ganharam projeção ao valorizar seguimentos sociais marginalizados. Enfatizamos que não causa neles nenhum mal estar devido a esse apadrinhamento de outras fontes para ganhar credibilidade e representação estética.
Essas duas matrizes continuam a (re)produzir efeitos e defeitos. Vários são os apressados em nossas terras que se lançam a produzir poemas de baixo valor estético. Criam grupos, denominações, maneiras de divulgar seus trabalhos das formas mais formais ou bizarras possíveis.
Asseguro aos que se dedicarem a leitura deste pequeno comentário, que para construir este texto, com essas observações; não fomos levianos ou todo impressionista para fazê-lo. Lemos sim poemas, mas não muitos. Não foi por falta de material, mas falta de ânimo em mergulhar em tanto feno. Pretendemos assim, como já destacado anteriormente, promover o debate e não cair tão somente nos discursos vazios, perdendo assim, tempo ouvindo reclamações dos que se sentirem ofendidos pessoalmente, já que infelizmente no nosso Brasil nos parece que criticar um texto de alguém é estar a se criticar pessoas.