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quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Não são coisas do futebol

Herasmo Braga

Nos últimos anos tivemos vários motivos para comemorações. Entre os momentos de glória temos a tão sonhada estabilidade economica, os maiores períodos democraticos da nossa história - sem sobressaltos, a constituição com mais tempo de vigência e a possibilidade de sediar os dois maiores eventos esportivos do mundo: a Copa do Mundo de Futebol 2014 e as Olimpíadas em 2016. Reconhecemos que todo esses méritos não incidem por obras do acaso. Sem uma visão um tanto ufanista, vieram já até meio tarde. Assim, motivos de alegria são o que não nos falta, todavia o que nos tem assustado um pouco são as permanencias dos péssimos hábitos que entre os países bem melhor organizados já aboliram há tempo. São estas atitudes que aqui questionamos, pois são frutos de um autoritarismo ultrapassado que só evidência a falta de sereniedade e seriedade nas articulações por demais demodé por parte de setores que se apropriam de coisas alheias com se fossem propriedade sua. É a nossa tradicional mistura histórica do público e do privado destacados nas análises dos historiador José Murilo de Carvalho e do antropólogo Roberto D´mata.
Acompanhar o futebol brasileiro na sua organização interna e na preparação de uma Copa do Mundo nos envergonha. Como aconteceu na história recente do nosso país - na organização de um evento esportivo de menor porte quando comparado com a Copa do Mundo e as Olimpíadas - que muitos esperam mais uma vez o uso indevido do dinheiro público para custear seus bens privados. O presidente da CBF é um exemplo. Este sujeito assumiu o posto de presidente da conferderação do futebol brasileiro há quase três décadas. Em suas ações percebemos que ele não mede esforços para atuar de maneira rasteira quando tem seus interesses contrariados. Exemplos desses tipos de atuações temos diversos. Entre as suas ações inoportunas podemos destacar a organização da comissão responsável pela organização da Copa do Mundo. Membros não só de confiança, mas de estreitas relações familiares estão cirurgicamente distribuídos em cargos estratégicos. Mas como se só esse mal não bastasse, o vitalício presidente da CBF meteu-se na eleição de uma entidade representativa dos clubes de futebol. Ele tentou impor a caditadura de um sujeito que já teve o seu atestado de idoneidade comprovado no futebol brasileiro ao quase levar a falência de um clube de maior torcida do Brasil através de diversos casos de incopetência administrativa somada aos inúmeros escândalos de corrupção passiva e ativa. Diante de tamanha autoritarismo inúmeros clubes se rebelaram e não aceitaram tamanho desmando e quem comandou o levante teve as suas merecidas represálias.
O caso mais conhecido foi a exclusão do estádio do Morumbi como sede de jogos na Copa do Mundo. Juvenal Junventus bateu o pé e não aceitou Kleber Leite como presidente do clube dos 13 e lutou para a reeleição do já também ultrapassado Fábio Koff, que representava naquele momento um mal menor do quer Kleber Leite a frente da instituição. Os mais otimistas ou ingênuos diriam: o Internacional também votou contra Kleber Leite e não teve o estádio Beira Rio excluído. Boa observação essa, mas incompleta. A voz que de fato se levantou contra essa tentativa de manipulação e falência do clube dos 13, promovendo articulações para a não vitória do candidato de Ricardo Teixeira foi o presidente do São Paulo. O Inter apenas cumpriu o seu papel de votar, talvez por isso a sua punição seja menor ou virá apenas no futuro.
Ao São Paulo Futebol Clube cabe agora assistir os demandos e autoritarismo do Ricardo Teixeira e seus comparsas que entre eles o maior ou mais privilegiado pela sua dedicação servil seja André Sanches, presidente do Corinthias. Enquanto todos os estágios tiveram vistorias rigorosas e planejamentos refeitos, o novo estádio do Corinthias, se é que se tornará realidade, já nasceu pronto e aprovado por telepatia para promover a abertura da Copa do Mundo. O detalhe disso fica por conta que ninguém viu ou conhece o projeto. Isso sim, é fazer valer não de credibilidade como afirma André Sanches, mas de oportunismo e mimo de pessoas despreparadas, desprovidas de caráter e que conduzem instituições importantes.
Um outro dado interessante nesta orquestração são os custos e quem vai bancá-los. A construção de um novo estádio custará bem menos do que as reformas em outros existentes como por exemplo: o Maracanã que custará 720 milhões de reais, o Mineirão 666 milhões de reais, o estádio de Brasília 696 milhões de reais. Detalhe todos são reformas, enquanto do Corinthias que é a construção de um novo e moderno estádio terá custo menos da metade deles. Essa comparação é de se estranhar no mínimo.
Sei que muitos ao lerem esse texto podem pensar: trata-se de algum são paulino rancoroso. Realmente quem escreve é um torcedor do tricolar paulista, só não rancoroso. Também um cidadão que, acima de tudo; condena atitudes inadequadas para melhor viver. Condena o seu clube não só por contratações mal sucedidas, mas por uma elitização de torcedores que não condiz com a realidade do nosso país. Condena um clube que falta aos seus dirigentes mais humildade e pés no chão. Condena o seu clube que deveria abrir mais as portas para a sua torcida principalmente aqueles que vem de longe e tentam conhecer o CT da Barra Funda e se deparam com seguranças nada educados que cuprem ordem de não permitirem a entrada de ninguém sob nenhuma condição. Condena o clube que deveria pedir desculpas quando errasse e não atribuisse somente falta de sorte. E que espera dias melhores...
Esperamos também a Copa do Mundo e que ela sirva de motivação para a democratização e organização do futebol brasileiro. Sirva para banir pessoas que pensam de maneira diferente do que o povo brasileiro almeja. Torcemos para o sucesso brasileiro dentro e fora de campo sem a farra de dinheiro público. Aguardamos que esse evento traga beneficios ao nosso país e que nos eleve ainda mais a nossa alta estima.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Um eleitor cansado

Findada mais uma eleição, lanço-me agora sobre os seus resultados. Reconheço estar neste momento dotado de sentimentos frustativos e até mesmo pueris. Mas estou decidido a afastar-me desta festa democrática! Não que eu tenha algo contra a democracia e os seus poderes representativos, mas decepciona-me ver como as coisas se encaminham nesse mundo da fantasia individualista.
Nestas eleições, observei situações um tanto atípicas enquanto outras mais do que repetidas. Fiquei orgulhoso - em um primeiro momento - com o fato de finalmente termos uma outra alternativa presidencial pautada dentro de uma realidade desejada e possível. Alternativa essa configurada em um sujeito competente e de sensibilidade social e ambiental. Soma-se a isso os traços biográficos fantásticos, tão marcantes como os que me levaram a adotar Lula como meu candidato desde da minha primeira votação em 1998. Sujeito esse de biografia singela e encantadora.
Por outro lado acompanhei a ausência de propostas e repetições de discursos de outrora e de outros de conteúdo futebolistico. Candidatos sem propostas ou compromissos significativos apareciam com uma única frase: nós somos do time de Lula. Esse mantra eleitoral marcava de maneira expositiva os vazios de conhecimentos político-social dos novos e velhos representantes. Com certeza esses aspectos devem ter feito até o individuo mais alheio a esse processo eleitoral ter se irritado com tanta repetição e tédio eleitoral.
Se por um lado comemorei uma significativa renovação necessária devido a inércia dos que antes se faziam presente na vida política brasileira, por outro enojou-me a eleição de esposas, filhos, irmãos e irmãs de velhas raposas, pois já sabemos que pouco ou nada propocionarão um progresso de desenvolvimento social mais justo e equilibrado. Os tais contemplados eleitoralmente serão apenas figurantes, pois o homem do lado de cá é quem dará as cartas. Como se tudo isso não bastasse, tivemos a ousadia e discirnemento de eleger um palhaço de vocação e não mais só de profissão. Mais um a incorporar o circo do Congresso Nacional Brasileiro. Não será nenhuma novidade sabermos que o palhaço estreante fará seus interessantes shows a um menor valor quando comparado aos mais antigos.
Realmente estou muito decepcionado com o não reconhecimento do trabalho realizado por pessoas de bem e que foram candidatos. Cito-os nominalmente por serem sujeitos ideias para uma República ideal: Antonio Neto e Nazareno Fonteles. Estes sim, seriam muito mais merecedores do que qualquer palhaço de circo, esposa, filho, irmão, irmã, raposa velha; para fazer frente a um Congresso participativo e gerenciador das conquistas sociais e qualitarias necessárias para o desenvolvimento da nossa nação.
Por estas e outras razões pretendo, portanto, amigos sair de cena não para sair da vida e entrar para a história, mas para não participar deste mundo imundo da política

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Razões que não se explicam

Herasmo Braga
Professor e ensaísta

Macia era a vida
sob as faveiras
antes da faca
dividir o boi
em novas glebas.

Antes que o tempo
fosse cortado
e o gado bravo
fosse levado
no macio andar
dos caminhões.
(Relatório, O tempo consequente)

Antonio Candido, em seu livro Vários Escritos, questiona a, até bem pouco tempo, ausência de Machado de Assis no rol dos grandes autores além das fronteiras do Brasil. Uma das justificativas para esse “esquecimento”, Candido aponta a pouca importância geopolítica que a língua portuguesa exerce no mundo.
Percebe-se, então, que tais observações são plausíveis e dignas de respeito, não por terem sido tratadas por Candido – crítico consagrado –, mas porque tais condições políticas, econômicas e sociais acabam interferindo na formulação objetiva do cânone. Apesar de seu texto ter sido publicado já há algum tempo e, portanto, refletiu o momento histórico daquele contexto, hoje as obras de Machado de Assis começam adentrar o universo dos autores consagrados, graças à iniciativa de críticos de peso, como Harold Bloom, John Gledson, Helen Caldwell, Susan Sontag, David Jackson, Jean Michel Massa entre outros.
Diante desse contexto, podemos observar que isso também acontece com outros autores distanciados do centro, pois eles acabam sendo marginalizados pelos meios intelectuais nacionais. Há inúmeros exemplos que padecem dessa miopia ou manca atuação intelectual, e dentre eles destacamos Hindemburgo Dobal. Vale a pena registrar o nosso desconforto e desconfiança dessa ausência no reconhecimento do vigor poético de Dobal, pois poetas e críticos consagrados já se manifestaram em relação ao poeta, como Manuel Bandeira, que o tratou de “poeta por excelência, um visceral da terra”; e Wilson Martins que afirmou: “O Sr. H. Dobal retransforma a poesia brasileira e folclórica pelo instrumento da poesia erudita e literária”; e Fábio Lucas, que o chamou de “poeta autêntico, de alta consciência verbal e forte expressão lírica”.
Justificativas para isso poderíamos especular diversas, mas uma delas nos parece ser mais aceitável: por conta do nosso isolamento histórico, desde nossa colonização, iniciada nas primeiros currais de pedra, desenvolvemos discursos que nos limitam ao meio. Por conta dessas ações envaidecedoras ou até mesmo de certo receio ao externo, acabamos, com isso, consolidando um sentido de auto-suficiência nocivo para vida cultural local.
Uma outra questão levantada que poderia justificar esse desconhecimento nacional de H. Dobal foi formulado por Ivan Junqueira, em depoimento apresentado no documentário de Douglas Machado, “H. Dobal – Um Homem Particular”, produzido pelo Instituto Dom Barreto e Trinca Filmes. Segundo Junqueira, Dobal não estava vinculado a nenhum grupo literário ou a concepções estéticas em moda da sua época, constituindo-se assim, um poeta singular, que acabou se isolando e ficando restrito apenas ao Piauí. Somando-se essas duas questões, que acabam desaguando no discurso do centro para periferia, e não o contrário, temos motivos que contribuem de forma decisiva para esse desconhecimento nacional do poeta. Outra proposição mencionada diz respeito ao caráter hermético de seus poemas, leitura interpretativa da qual discordamos, pois o que acreditamos é que, na produção do poeta, ele vai buscar em diversos meios e na tradição literária a realização do seu oficio, fundindo e difundindo suas concepções universais utilizando-se da sua terra como matéria a ser lapidada. A materialidade dos seus poemas, Dobal retira dos aspectos do cotidiano, da singeleza das ações e do ato do viver do homem desprovido de sentimentalidades excessivas.
Esperamos diante das facilidades comunicativas de hoje possamos corrigir essa injustiça a um grande poeta. Tirá-lo da nossa exclusividade e levá-lo a degustação de outros sujeitos não só do nosso país continente. Lembrando sempre que para a boa poesia não há fronteiras que se justifiquem.

sexta-feira, 2 de julho de 2010

Novos autores e obras: Vozes do Sotão de Paulo Rodrigues

Zuenir Ventura tem uma posição que compartilhamos prontamente sobre as ameaças apocalípticas do final do século XX e inicio do XXI. Já que não é de hoje que se proclama o fim, por exemplo, da pintura com a invenção da fotografia, do cinema com a televisão, do livro com a internet, do autor, de Deus e tudo mais. Para Zuenir tudo isso não passa de histeria dos receosos da arte de se inventar e reinventar, diz ele: “acho que ocorre convergência e não antagonismo entre as tecnologias. Uma tecnologia nova exige o aperfeiçoamento da anterior, não sua extinção”. Assim diante desta ideia o que devemos observar são as ações do reinventar, do tranfigurar. Portanto, nada o que se move e inova não se extingue o anterior, e sim, acrescenta-se.

Em relação à literatura devemos nutrir o mesmo sentimento. Não se pode dar continuidade a uma tradição, a nosso ver equivocada, que acredita que a boa literatura nacional só foi até a década de 20 do século passado e que dede então não há ou pouco se tem de grandiosas obras em nossas letras. Há sim, muitos autores ainda por serem visitados e revisitados que produziram antes, durante e depois do levante modernista, em sua maioria, autores dignos das nossas melhores observações. No contexto recente de autores com obras marcantes, destacamos dois romancistas: Milton Hatoum e Paulo Rodirgues.

Milton Hatoum, hoje, começa a fazer parte do cotidiano dos bons leitores nacionais que estão inseridos dentro e fora do meio acadêmico. Sua obra tem forte influência de alguns autores consagrados como Proust e Faulkner. O traço memorialista é uma constante em suas obras. Suas produções ainda que pequena em número, ganha ares de grandiosidade na qualidade como Relato de um certo oriente, Dois irmão e Cinzas do Norte todos romances merecedores de admiração e respeito. Acrescenta-se no rol de suas publicações ainda a novela Órfãos do Eldorado e o livro de contos Cidade Ilhada obras essas um tanto aquém quando comparada com as primeiras. Outro autor que deve ter o seu valor reconhecido é Paulo Rodrigues que somente aos 53 anos lançou seu primeiro livro à margem da linha, em 2001. Em 2004 publicou o livro de contos Redemoinho, escrito durante 25 anos. Diz Luiz Paulo Faccioli ao escrever sobre Paulo Rodrigues: “A verdade é que o texto literário — situação que se aplica também às demais artes — não nasce no instante em que o autor se dispõe a escrevê-lo. Semelhante à gestação de um ser vivo, a produção artística começa muito antes de sua realização e nada mais é que o reflexo de um conhecimento sedimentado ao longo do tempo e da interpretação original que der o autor a esse conhecimento”. (Rascunho, 2003)

Na mesma linha de pensamento sobre o seu ato de produzir com parcimônia sua produções afirmou Paulo Rodriques que: “De fato não tenho ansiedade em publicar. Escrever é uma necessidade, publicar pode ou não ser uma conseqüência” (Rascunho, janeiro de 2010).

Em 2009 foi lançado Vozes do Sótão, em que a ideia do livro surgiu a partir das anotações feitas pelo seu padrasto em uma cardeneta há 52 anos. Paulo Rodrigues despertou um forte sentimento de empolgação por parte da crítica e de alguns autores de grande projeção nacional com a sua primeira obra como Raduam Nassar. Nassar chega a afirmar que Paulo Rodrigues “maneja a língua de forma invejável”. Já Luiz Fernando Carvalho diretor cinematográfico que adaptou Lavoura Arcaica para o cinema define a produção de Paulo Rodrigues como uma “travessia interior, uma queda para o alto”.

Vozes do Sótão narra o pequeno drama familiar de um homem simples e confuso, exilado no mundo, num mundo próprio tentando conviver com o passado que se apresenta constantemente em seu ser aterrorizando-o. Já nas primeiras linhas percebe-se o clima desconexo, introspectivo. Alguns fatos mencionados na narrativa lembram alguns contados por Dalton Trevisan. A fragmentação da escrita - influencia marcante de grandes autores como Clarice Lispector - com a intervenção de outras vozes agradam a leitura e insere o leitor nas angustias intimistas do narrador. A polifonia gera a tensão que se mantém durante todo desenvolvimento do enredo.

O relato é subdividido em dois pontos de vista. A voz da narrativa, na terceira pessoa destacado em itálico, descreve de forma objetiva os fatos do narrador (Damiano). Sujeito rejeitado pela mãe e pelo irmão Dagoberto. Estrume esta é a expressão utilizado pela mãe ao refererir-se a Damiano e constitui uma das marcas do desprezo da mãe. Damiano vive de maneira isolada, guardando em sua memória além das trágicas lembranças um estojinho de veludo já bastante desgastado pelo tempo em que depositava alguns objetos que pertenciam a ela.

Faz parte da narrativa uma voz que vem das suas dolorosas marcas do passado, uma voz que emerge do sótão que assombra esse sujeito que tem como profissão ser alfaiate por ser algo obsoleto, demonstrando, no dizer de Lúcia Bettencourt “sua inadequação ao mundo que o repudia mesmo quando tenta integrar-se (Rascunho, dezembro, 2009). É um romance conflitante do inicio ao fim, que nos toma de sobressaltos todas as nossas expectativas sem nos decepcionar no final. Assim, Paulo Rodrigues constitui em uma agradável surpresa em nossas letras. Digno das melhores adaptações de suas obras para o cinema e acréscimo de um contingente cada vez maior de leitores de suas obras.
[Herasmo Braga]

sábado, 29 de maio de 2010

DUAS ELITES / Rascunho

DUAS ELITES
Os resultados e estratégias da "velha guerra" entre alta literatura e literatura de gênero

Tereza Yamashita

Caro leitor, por um minuto esqueça que o mundo não é feito somente de extremos, que as coisas não são apenas pretas ou brancas. Esqueça todas as gradações, todos os matizes, todas as etapas intermediárias entre o sólido e o líquido, entre o líquido e o gasoso. Só por um minuto, vou precisar simplificar a realidade a fim de apalpar certo fenômeno que, como qualquer fenômeno deste mundo de certezas provisórias, sai irritantemente do foco sempre que alguém tenta capturá-lo. Agora venha comigo e procure pensar que no mundo literário existem apenas dois grupos antagônicos. Esqueça as outras possibilidades, os grupos menores de que cada grupo é feito, os conflitos e as contradições que agitam internamente as células de cada grupo. Só por um minuto, vamos simplificar.

Imagine um grupo chamado crítica acadêmica. Esqueça que os subgrupos que o formam - multiculturalistas, estruturalistas, pós-modernistas, sociológicos, teóricos da recepção, etc. - estão em constante combate ideológico. Imagine outro grupo, chamado literatura de gênero. Esqueça que os subgrupos que o formam - new weirds, cyberpunks, new wavers, góticos, adeptos da FC hard, etc., para ficar apenas na ficção científica - também estão em constante combate ideológico.

É sabido que a crítica acadêmica, praticada nas universidades e em boa parte da imprensa (a maioria dos jornalistas tem mestrado e doutorado, outros são professores universitários), torce vigorosamente o nariz para a literatura de gênero: policial, espionagem, ficção científica, fantasia, terror, etc. Também é sabido que os autores, os editores e os consumidores da literatura de gênero torcem o nariz, com igual vigor, para a crítica acadêmica e as obras que ela legitima. Isso deixa claro que o jogo literário, diferente do futebol ou do boxe, tem pelo menos dois conjuntos de regras. O critério aplicado pelo primeiro grupo na avaliação das obras literárias é o reverso do critério aplicado pelo segundo grupo.

São duas elites, cada qual com sua balança e sua régua. A primeira diz que trabalha apenas com a alta literatura, com a grande literatura, com a Literatura com inicial maiúscula. Ela acusa a segunda de trabalhar somente com a baixa literatura, com a literatura vulgar, fácil, de entretenimento. A segunda elite acusa a primeira de ser elitista, aristocrática e esnobe, de só apreciar obras de linguagem complicada e obscura. As obras abençoadas pela segunda elite geralmente vendem mais do que as obras abençoadas pela primeira, que se ressente muito disso. E se vinga, fundando um clube muito mais elegante e prestigiado, chamado establishment, ao qual jamais permitirá que sejam admitidos uma obra ou um autor da segunda elite, que também se ressente disso.

Os dois critérios de avaliação literária são:

Critério da elite acadêmica

1. Linguagem original, conotativa, que não possa ser atribuída a outros escritores do presente e do passado, por vezes avessa à norma culta. O autor deve se expressar de maneira única, inaugurando seu próprio modo poético.

2. Subjetivismo. Narrador modernista, tortuoso ou fragmentário, psicológico, pouco confiável, às vezes delirante.

3. Enredo frio, pobre em ação, sem muitas peripécias ou surpresas, próximo da vida comum. A forma literária é mais importante do que o conteúdo.

4. O mundo interior do protagonista e das personagens é mais importante do que seu mundo exterior.

5. Fuga do gênero a que (supostamente) pertence. Faz parte do desejo supremo de originalidade a rejeição das principais diretrizes do gênero a que a obra pertenceria. O novo romance quer transcender os limites do gênero romance, o novo conto quer transcender os limites do gênero conto, o novo poema quer transcender os limites do gênero poema.

6. Purismo. As obras fronteiriças ou mestiças, que apresentam elementos dos dois mundos, são violentamente rejeitadas pelo sistema.

Critério da elite da literatura de gênero

1. Linguagem transparente, denotativa, por vezes complexa, mas ainda assim reconhecível por uma vasta gama de leitores. O autor deve se expressar respeitando a norma culta que orienta o uso do idioma.

2. Realismo. Narrador clássico, organizado e disciplinado, pouco introspectivo, confiável, onisciente.

3. Enredo quente, rico em ação, cheio de peripécias e surpresas, afastado da vida comum. O conteúdo literário é tão importante quanto a forma, ou até mais.

4. O mundo exterior do protagonista e das personagens é mais importante do que seu mundo interior.

5. Adequação ao gênero e ao subgênero a que pertence. O romance ou o conto policial, de fantasia ou de ficção científica respeitam as balizas que definem o gênero e o subgênero a que pertencem.

6. Ecumenismo. As obras fronteiriças ou mestiças, que apresentam elementos dos dois mundos, se não são bem aceitas pelo sistema, ao menos não são sumariamente rejeitas.

Muitos autores do primeiro grupo caem em depressão ao perceberem que seu romance, ou sua coletânea de contos ou de poemas, é um retumbante fracasso comercial, apesar do amplo reconhecimento da crítica especializada. Jamais terão o número de leitores de que se julgam merecedores. Muitos autores do segundo grupo, diante do sucesso de vendas de seu romance, ou de sua coletânea de contos (raramente há poetas aqui), também ficam deprimidos ao perceberem que jamais terão o reconhecimento da crítica acadêmica e conseqüentemente jamais figurarão nas apostilas e nos compêndios do ensino oficial. Jamais pertencerão ao establishment.

Uns aceitam a contragosto a situação e seguem em frente. Outros esperneiam e brigam. Insultam. Dizem, os do primeiro grupo, que o Brasil não é um país de leitores (de leitores qualificados, é o que querem dizer), afirmam que a imbecilidade e a massificação reinantes são culpa da tevê e da péssima qualidade do ensino público. Dizem, os do segundo grupo, que os críticos acadêmicos confundem complexidade com complicação, afirmam que os membros dessa elite literária beneficiam as obras mais áridas e menos inteligíveis como estratégia de dominação cultural e social.

Mas o maior pecado que os membros de cada grupo cometem é avaliar as obras do grupo adversário com o critério errado. Avaliar as obras da literatura de gênero com o critério da elite acadêmica gera todo tipo de mal-entendido. Avaliar as obras da alta literatura com o critério da elite da literatura de gênero também. Confusão e encrenca. Nada de proveitoso pode resultar dessa inversão de valores motivada pelo puro chauvinismo.

Aí está o esboço em preto-e-branco do conflito alta literatura versus literatura de gênero. E se acreditarmos, concordando com o que Étienne Souriau escreveu em A correspondência das artes, que há certa analogia entre os diversos sistemas artísticos, esse esboço de uma luta de classes literárias poderá ser facilmente adaptado à esfera do cinema, do teatro, da música, etc.

Obrigado, caro leitor, por aceitar meu convite e atravessar comigo uma paisagem simplificada, que, apesar do desenho esquemático e sem detalhes, parece representar relativamente bem um conflito real, um dilema que não é de hoje. E chegamos ao ponto principal da caminhada. Não ao seu final conciliador - estamos muito longe de encontrar a solução para o impasse -, mas ao meio: à simples, clara e objetiva formulação do problema. Uma formulação que procurou evitar as falácias tão comuns (sofismas, falsos axiomas, observações inexatas, erros de acidente) nas mesas-redondas e nos debates on e off-line. Para que você agora opine, concordando, discordando ou mudando o ângulo de visada e propondo outro modo de avaliar a situação.

A crítica como papel de bala

Reações de ressentimento nostálgico, e certo proselitismo agressivamente conservador, dominaram (até agora, salvo engano, sem maior ressonância) os necrológios de Wilson Martins, desde sua morte em 30 de janeiro deste ano. Mais do que avaliações de fato da trajetória e da prolífica contribuição documental do colunista e pesquisador, ou figurações autoelogiosas minimamente convincentes (mediadas pela do morto) para o crítico enquanto herói solitário e combativo, o que essas manifestações, vindas de segmentos diversos do campo literário, parecem evidenciar, ao contrário, é o apequenamento e a perda de conteúdo significativo da discussão crítica, assim como da dimensão social da literatura no país nas últimas décadas.

Ao lado dessa retração, e em relação direta com ela, manifesta-se fenômeno curioso, espécie de negativo da situação — comentada à época por Roberto Schwarz — de dominância de uma cultura de esquerda durante os primeiros anos de ditadura militar no Brasil dos anos 1960. Agora há um conservadorismo que é francamente hegemônico. E envolve desde o retorno às figuras todo-poderosas do especialista monotemático, do agenciador com capacidade de trânsito inter-institucional e do colecionador de miudezas, às interlocuções preferencialmente de baixa densidade dos minicursos e palestras-espetáculo, do universo das regras técnicas e das normas genéricas e subgenéricas, fixadas acriticamente em oficinas de adestramento, à glamorização midiática de instituições autocomplacentes como a Academia Brasileira de Letras e correlatas, a formas variadas de culto a personalidades literárias, em geral mortas (e Clarice Lispector, Leminski, Ana Cristina Cesar têm sido objeto preferencial de dramaturgias miméticas, curadorias acríticas, ficções e comentários "à maneira de"), mas também em vida veem-se autores, mal lançados em livro, se converterem em máscaras que, com frequência, os aprisionam em marcas registradas mercadológicas de difícil descarte. Como se tornou, a meu ver, a trajetória tão distinta de Marcelo Mirisola e Patrícia Melo, para ficar em dois exemplos de escritores cuja produção poderia ir bem além do exercício automimético.

A idealização de Wilson Martins como imago exemplar do crítico, nesse contexto, não chega propriamente a espantar. Talvez a virulência com que ela tem sido feita nos elogios fúnebres, isso sim seja curioso. Uma virulência que supõe um conflito no entanto invisível, apenas virtual. Nada que se explique, entretanto, via clichê cordial. Pois não há lugar para cordialidade alguma num campo cuja retração e desimportância amesquinham e tornam ainda mais cruenta a disputa por posições, pelos mínimos sinais de prestígio e por quaisquer possibilidades de autorreferendo. Daí a truculência preventiva, propositadamente categórica, emocionalizada, nada especulativa. Espantosa talvez seja a falta de reação mesmo por parte daqueles cuja formação ou experiência crítica seria de molde a articular formas potenciais de dissensão. E que, ao contrário, recebem o autoapequenamento da crítica e do espaço para o debate público com passividade, resignação, quase desinteresse, incapazes de encontrar um campo ativo, mesmo minúsculo, de resistência ou interferência.

Talvez caiba, então, observação mais detida desses necrológios que figuram o colunista como um injustiçado, como uma espécie de herói solitário na pontualidade de suas resenhas semanais, em moldes idênticos, ao longo de cerca de seis décadas. Pois, se podem ser lidos como particularmente sintomáticos de uma redução do potencial de dissenso das intervenções no calor da hora, esses lamentos sinalizam, por outro lado, com singular acuidade, a perda de lugar social da crítica. O que os faz adotarem tom crescentemente exacerbado, agressivo, à medida que se percebem disfuncionais, e dispensáveis, mesmo em meio a um fluxo crescente de lançamentos, no que se refere à divulgação e afirmação de nomes e obras. Por vezes ainda lhes cabe o espaço de cerca de quarenta linhas de uma orelha ou de alguma declaração sobre a importância da obra. Ou o lugar meio envergonhado de um posfácio ou nota introdutória. Não muito mais do que isso ou as duas ou três laudas de uma resenha. Qual o interesse de um comentário crítico quando se pode obter muito mais visibilidade para escritores e lançamentos por meio de entrevistas, notas em colunas sociais e participações em eventos de todo tipo?

Fabricam-se nomes e títulos vendáveis, vende-se, sobretudo o nome das editoras, e sua capacidade de descobrir "novos talentos" semestralmente, ao sabor das feiras literárias. E, nesse sentido, formas dissentâneas de percepção, como a crítica, se mostram particularmente incômodas. Formas personalistas e estabilizadoras, ao contrário, se esvaziadas, parecem continuar benvindas. Se adotado o perfil do colunista que "sabe ficar no seu lugar", que funciona, com voz opiniática, e sem maiores tensões, como moldura quase invisível, inconsequente, para o que o mercado editorial ou o próprio veículo quiser referendar. Se desse lugar sem qualquer ressonância não houver condições reais de intervenção, formulação de questões relevantes e expansão do mínimo espaço público talvez ainda disponível para um exercício crítico que não se confunda inteiramente com busca de prestígio ou com um guia de consumo.

Talvez seja necessário, na discussão de um espaço ainda crítico para a crítica, matar mais uma vez Wilson Martins. Já que sua transformação em imago exemplar parece expor inequívoca vontade de retorno a algo próximo à tradição das Belas Letras, a um regime estável e hierarquizado de vozes e gêneros, a regras fixas de apreciação e prática textual, a um apagamento de novos espaços de legibilidade, espaços ainda não demarcados ou nomeados, e sugeridos por formas de compreensão expansivas, e não exclusivas, do campo da literatura. Um desejo de reierarquização e pureza que não parece sem sintonia com o temor de um universo sóciopolítico menos hierarquizado, com a expansão meio informe de uma classe média cujo imaginário não parece ultrapassar uma coleção inesgotável de bens de consumo. E com uma extraordinária expansão das práticas digitais de escrita, acompanhada, paradoxalmente, no entanto, de uma quase invisibilidade coletiva dessas manifestações, de um encolhimento quase ao absurdo da esfera pública.

Destaco, então, a título de exemplo, dentre os textos sobre a morte de Martins que parecem operar de modo reativo um fechamento auto-afirmativo do campo literário, os de Alcir Pécora, professor da Unicamp, publicado no suplemento "Mais!" da "Folha de S. Paulo"; do escritor Miguel Sanches Neto, divulgado em publicação de circulação menor, e orientação orgulhosamente conservadora, o jornal curitibano "Rascunho"; e, por último, um post incluído no blog de Sérgio Rodrigues no portal de notícias do IG.

Apesar de assemelhar-se aos demais no elogio fúnebre, em que a um velho modelo de crítica — como afirmação personalista do gosto — corresponde um território embelezado do literário, este último é o menos enfático dos três, sublinhando, mais de uma vez, meio a medo, o fato de "quase nunca concordar" com Martins. Desvinculando-se, assim, de maiores filiações, aponta simultaneamente, no entanto, "uma concordância maior", ligada a certa capacidade demarcatória, pois Martins seria alguém "que ousava falar de literatura de dentro", que parecia habitar o campo letrado, posicionando-se na contramão das "verdades importadas de campos fora das letras". O que interessa a ele parece ser a estabilidade identitária, uma garantia de intransitividade para o campo literário, o que a leitura de Wilson Martins invariavelmente oferecia, como uma ilha intemporal, propositadamente cega, sem lugar para a dúvida, em meio ao movimento relacional, autoinstabilizador da parte mais significativa do exercício crítico da segunda metade do século XX.

Ecos de uma vontade de retorno a um literário-apenas-literário se notam, igualmente, nas outras duas notas fúnebres. A de Miguel Sanches Neto não à toa fala de Martins como "o crítico", aquele que seria uma mistura de "bibliotecário" extremamente abrangente, voraz, pois o seu interesse seria por "toda a produção nacional", e de "leitor seletivo", cujo território independente, personalista, seria imune a influências, compadrios, regionalismos.

Uma espécie de “posição sem posição” que, se já passível de discussão pela simples inserção num veículo comercial, pelo exame do conjunto de resenhas produzidas por ele ao longo dos anos, não apontaria, na verdade, para atributo propriamente invejável na experiência analítica. Nesta, ao contrário, são a capacidade de elucidação da própria cadeia argumentativa, e das condições de constituição do sentido e de formulação do juízo, ao lado da articulação de relações críticas significativas com a hora histórica alguns dos fatores preponderantes. E não uma sonhada disponibilidade sem limites ou uma capacidade de exaustiva amostragem e arquivamento da produção editorial.

O texto de Alcir Pécora opera exemplarização semelhante da figura do crítico, a começar do elogio duplo contido no título do artigo publicado na "Folha": "Erudito dissonante". Uma erudição que contrasta às áreas que lhe parecem dominantes nos departamentos de Letras — os estudos teóricos e os estudos culturalistas — e que figuram como oponentes surdos em sua reavaliação do trabalho de Wilson Martins. A vontade de afirmação da importância do crítico morto leva-o, nessa linha, a comparar o seu trabalho ao de Darnton e Chartier, apontando papel antecipador em seu interesse pela cultura material e pela história do livro e da leitura. Uma coisa, porém, é compilar material que poderá se tornar relevante segundo outra perspectiva de leitura, outra bem diversa é constituir conscientemente um objeto de estudo, um ponto de vista anaítico, uma operação crítica, ou a avaliação de um campo disciplinar.

Se não é possível ver crítica ou cronologicamente em Wilson Martins um precursor do trabalho de Henri-Jean Martin e Lucien Febvre ou da teoria das materialidades da comunicação, há outra ordem de atributos que levam Pécora a destacá-lo. Uma não-cordialidade propositada (aspecto talvez discutível, apenas aparente, se observam-se com cuidado os não violentamente criticáveis por ele e o que se resguarda, no seu caso, via antagonização); a truculência verbal (também não exclusiva, bastando observar, nesse sentido, alguns dos colunistas mais populares e longevos em diversas áreas e meios de comunicação); o orgulho de estar sozinho (quando, ao contrário, desde os anos de estabilização democrática, no país, são figuras marcadas exatamente por um conservadorismo ativo que têm se mostrado legião e emprestado a respeitabilidade de nomes já feitos às páginas de entretenimento e opinião dos jornais).

Quando os tempos políticos se mostram outros, e uma homogeneização impositiva parece barrar as cisões necessárias à experiência crítica do próprio tempo, quando já não se constituem, com facilidade, margens articuladas de resistência e situações definidas e consequentes de conflito, talvez seja mais fácil converter a crítica em operação reativa, disfuncional, mas virulenta, cujo motivo condutor passa a ser o retorno autocongratulatório a um passado de glórias, no qual os textos de intervenção podiam ainda provocar controvérsia, e o prestígio das Belas Letras enobrecia igualmente críticos e escritores.

O que parece, no entanto, nostálgico, reativo, talvez não aponte exclusivamente para um período anterior à formação da crítica moderna no Brasil, mas para uma reprodução esvaziada de sentido, e desligada de vínculos efetivos com a experiência histórica, de comportamentos, práticas de escrita e certo culto à autodivulgação e à vida literária que parecem se expandir (em prêmios, concursos, revistas, blogs, antologias, bolsas de criação) em movimento inverso ao da restrição que se opera no campo da produção e da compreensão da literatura, ao da quase total desimportância de livros e mais livros que se acumulam sem maior potencial de instabilização, sem provocar qualquer desconforto, sem fazer pensar. Uma restrição que talvez indique uma incapacidade não só da crítica, mas do campo literário, de modo geral, de reinventar a sua sociabilidade, de produzir condições outras para a própria prática.

Lembro, nesse sentido, a resposta de Jacques Rancière quando indagado, em entrevista recente, a respeito de uma série de escritores contemporâneos. Sem desqualificá-los, comentaria, no entanto, distinguindo a atual da ficção de até meados do século XX: "Penso simplesmente que a literatura não inventa hoje categorias de decifração da experiência comum". E concluindo numa espécie desdramatizada de beco sem saída: "As formas de narratividade, de expressividade, de inteligibilidade que ela inventou foram apropriadas por outros discursos ou outras artes, ou banalizadas pelas formas de comunicação".

Para além do quadro local, o que Rancière sublinha, em perspectiva mundial, é a aparente interrupção de um período de vigorosa contribuição dos estudos literários às ciências humanas (como ocorreu ao longo do século passado), e de poder significativo de interferência e transformação do literário sobre outras práticas artísticas. O que não apenas no Brasil parece encontrar resposta compensatória à sua desnecessidade, e a uma fraca ressonância, em premiações, incentivos, edições de luxo. E numa ficcionalização autotélica de uma espécie de território exclusivo para o literário e sua crítica, de lugar sem condicionamentos ou ecos, que, hipoteticamente sem interferência de outras artes e disciplinas, se mostra, por isso mesmo, incapaz de se repensar e de estabelecer ligações mais consequentes com o próprio tempo.

Curiosamente, como já demonstraram há alguns anos George Kornis e Fábio Sá Earp, e mais recentemente Jaime Mendes, em estudos sobre a economia do livro, se, em termos de oferta, de número de exemplares, o mercado literário vem apresentando um crescimento de mais de 30% desde 2004, isso não se tem feito acompanhar, todavia, nem do aumento de alcance dessa produção, nem de faturamento por parte das editoras, nem de capacidade de absorção por parte de consumidores e bibliotecas. E é como volta a um jogo entre iguais, a um território mais restrito, homogêneo e regulado, de relevância previamente estabelecida, como volta às Belas Letras que se pode compreender a virulenta ressurreição de Wilson Martins, o desejo de Sérgio Rodrigues de um campo puro do literário, a ideia de uma amostragem irrestrita como a de Miguel Sanches Neto (pois previamente demarcada por gêneros, dicções, territorializações diversas), o sonho com um tempo em que "a literatura e o crítico não pareciam ter que sair de cena", para voltar ao texto melancólico e, a meu ver, equivocado, de Pécora.

E, no entanto, talvez seja exatamente desse "lugar estreito demais", e pouco público, desse ponto cego que talvez não se veja em jornais e nas manifestações mais concorridas da vida literária, que caiba à crítica e à literatura definir outros espaços de atuação e trânsito, lugares não demarcados (retroativamente) pelo beletrismo redivivo, nem pelas identidades estáveis do resenhista, do prefaciador, do professor judicativo, do ficcionista auto-mimético. Mas em movimentos de deslocamento nos quais a literatura e a crítica se vejam forçadas, como observa Agamben ao pensar sobre o contemporâneo, a mergulharem "a pena nas trevas do presente". E a saírem de si no sentido da figuração de novas formas de visualização e radicalidade. À maneira do que faz Carlito Azevedo ao reinventar a própria dicção em meio à tensão entre o poema como narrativa e percurso e a sua dramatização interna em estações imagéticas instáveis. À maneira do que fizeram Bia Lessa e Maria Borba, em bela operação crítica, ao amputarem cenicamente, em "Formas breves", a obra de Tchekhov, Kafka, Thomas Bernhard, Sérgio e André Sant’Anna, Almodóvar e mais e mais. À maneira da concepção musical de Rodolfo Caesar, na qual a reflexão em livro sobre a composição "Círculos ceifados", funciona como fator de variação operatória, como obra suplementar por meio da qual escrita e escuta se desdobram e interferem, sem coincidência, potencializando o campo de tensões em que se investiga a experiência composicional. Ou, para ficar em mais um exemplo apenas, como no enfrentamento quase de estrangeiro de Nuno Ramos diante da matéria verbal que, em livros como "Cujo" (Editora 34) e "Ó" (Iluminuras), adquire um nível singular de presença, parecendo intensificar-se exatamente pelo lugar de fora em que se processam essas intervenções.

*FLORA SÜSSEKIND é crítica literária, pesquisadora da Fundação Casa de Rui Barbosa e professora de teoria do teatro da UNI-Rio. Autora de "A voz e a série" e "O Brasil não é longe daqui", entre outros.

terça-feira, 18 de maio de 2010

A cartase do mercado

Em uma das minhas aulas sobre poesia brasileira, discorria sobre uma parte da teorização literária relacionada à estética da recepção. Na análise de uma das teses formuladas por Jauss ocorreu-me a lembrança do escritor Milton Hatoum. Considera-o como um dos mais promissores ficcionistas da atualidade. Hatoum é autor dos romances Relato de um certo oriente (1989), Dois irmãos (2000), Cinzas do norte (2005) e da novela Órfãos do Eldorado (2008) e o livro de contos Cidade Ilhada (2009). Vencedor de vários prêmios literários como o Jabuti com os três primeiros livros. Observei que o tempo da primeira publicação para a segunda foram de 11 anos. Da segunda para terceira 5. Acredito que este distanciamento temporal tenha servido para um melhor lapidação das obras. Esse aspecto fica bem evidente quando se analisa os aspectos estéticos, pois a qualidade da primeira para segunda é notória. Já em relação as últimas obras, principalmente em relação à novela a qualidade estética deixou a desejar. A escrita memoralista das primeiras publicações continua como força motriz do desenvolvimento da narrativa. A descrição de Manaus como componente orgânico, com vivências mescladas entre as inovações, tradições indígenas, espírito cosmopolita e isolamento geográfico e social se fazem presente no enredo. Todavia volto a destacar uma das suas mais recentes produções devido qualidade aquém das demais.
Acredito que esta perda não estar relacionada diretamente na leve mudança de gênero, mas associo a pressa do mercado. Hatoum talvez tenha sido tragado conscientemente ou inconsciente pelo mercado. Escrever requer tempo e dentro de uma atitude iluminista concentração. A escrita de qualidade exige doação, entrega e não de pressa por ter o seu nome circulando em meio ao campo literário. Talvez esse meu pensamento possa estar sendo injusto com alguns produtores de ficção ou não que tem a pressão como umas de suas aliadas dentro do processo de composição. Mas no geral, penso eu, essa necessidade de ter a cada ano uma publicação se encontra mais associada a exigencia mercadológica do que excesso de criatividade.
Não compartilho da ideia de que um escritor não escreva por dinheiro, e sim, por um ideal expressista. As necessidades de toda e qualquer individuo deve ser suprido pela força do seu trabalho, assim, o escritor que tem de sobreviver por mérito de seu ofício. No entanto, ressalvo que não se deve sempre atender o momento financeiro de agora e lançar ao público qualquer produção, pois isto estará, ao meu ver, compromentendo toda uma trajetória em que terá como fim próximo a substituição do agente por outro mais rentável. Portanto, deve o ficcionista impor o seu ritmo e continuar a primar pela sua excelência e não simplesmente se abdicar disso e acabar por cair no ostracismo.

Herasmo Braga

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Revista Desenredos

EDITORIAL

Além das seções já conhecidas por nosso leitor, a revista dEsEnrEdoS traz, nesta edição, seu primeiro dossiê: Caminhos do regionalismo, onde pesquisadores de diversas instituições espalhadas pelo Brasil demonstram a complexidade da noção de regionalismo e sua força operacional, contrariando as expectativas de alguns apologetas da globalização. O lema destes pesquisadores do regionalismo que constam no dossiê pode ser resumido, com feliz precisão, por uma fala capital da pesquisadora Ligia Chiappini, em um texto de 1995: “em vez de explicar a obra regionalista bem realizada, negando sua relação com o regionalismo para afirmar imediatamente sua universalidade, seria preciso enfrentar, pela análise trabalhosa de cada caso, a questão de como se dá a superação dos limites da tendência, de dentro dela mesma, pela potencialização de suas possibilidades artísticas e éticas”.

Chegamos a esta edição no momento em que o país ainda se recente da perda de Wilson Martins (1921-2010), um dos mais importantes e polêmicos intérpretes de nossa cultura.

Wilson Martins ousava uma atitude que a crítica oriunda das universidades morre de medo: emitia juízos. Os textos frutos das pesquisas universitárias ou trabalham com o já canonizado – o que pressupõe a desnecessidade de ajuizamentos valorativos, pois o que é canônico deve ser bom – ou passam por cima dessa questão porque o que interessa é usar o texto literário como pretexto para fazer política cultural. Os exemplos extremos – mas que, curiosamente, podem andar juntos – são a semiótica e os estudos culturais. A semiótica traz fôrmas universais que podem ser aplicadas indiferentemente à Divina Comédia ou às letras do Babau do Pandeiro. Já os estudos culturais consideram que a crítica é o campo estratégico de batalha contra a hegemonia branca, masculina e européia. Assim, o valor não está na obra, mas no sujeito-emissor e no grupo a que ele reivindica direitos. Tais teorias e suas congêneres, portanto, se eximem de emitir juízos de valoração estética, de separar o joio do trigo.

Comentam-se freqüentemente sobre os “erros” de avaliação crítica cometidos por Wilson Martins. Suas diatribes contra Jorge de Lima, por exemplo, deixaram muita gente incomodada. Mas tinha mesmo que errar muito quem, há décadas, escrevia textos num ritmo semanal. Quem dizia ler um livro por dia. Há erudições seletivas, como a de Harold Bloom, e erudições onívoras, como a de Wilson Martins. Isto, somado à desmitificação do papel social do crítico que ele abraçava como programa, explica porque às vezes construía polêmicas a respeito de obras que não valeriam à pena.

Tanto no campo da pesquisa especializada e de fôlego como na pedagogia literária que Wilson Martins exercia através de seus artigos jornalísticos percebe-se uma marca meio século XIX, que é a confiança absoluta – Jorge Luis Borges diria “clássica” – na potência expressiva da linguagem. A primeira frase do primeiro volume (de um total de sete) da sua pretensiosa História da inteligência brasileira é a seguinte: “A história da inteligência brasileira começa em 1550, quando o Pe. Leonardo Nunes inicia os estudos rudimentares de Latim no Colégio dos Meninos de Jesus, em São Vicente” (2ª ed., 1977, p. 13). Nada de debate metodológico ou epistemológico; nenhuma exposição de controvérsias quanto a datas. De forma semelhante, a introdução aos 13 volumes dePontos de Vista (13 até 1997, podem ser mais) se resume a pouco mais que uma página. Wilson Martins confiava no seu bom gosto e na sua erudição, sem se preocupar em demarcar seu território de atuação ou em expor com exaustão os critérios que guiavam suas escolhas. Isto denotava menos anti-intelectualismo do que anti-exibicionismo. Na zombaria que ele fazia das correntes da crítica literária não havia despeito, mas uma profunda consciência do traço rebarbativo daquelas imensas maquinarias teóricas e de sua curta validade histórica.

Entre a erudição acadêmica e a mera divulgação publicitária de obras literárias, deveria haver um batalhão de Wilsons Martins. O Brasil só tinha um. E é à memória deste homem inconfundível que este número de dEsEnrEdoS é dedicado.

Os Editores

sexta-feira, 12 de março de 2010

Entrevista com Vila-Matas sobre O Ausente Presente por Sérgio Miguez

Enrique Vila-Matas é um dos mais proeminentes escritores da atual literatura hispânica, nasceu em Barcelona em 1948 e já lançou 28 títulos em mais de 20 países. Seis de seus livros foram traduzidos para o Brasil: A viagem vertical, Bartleby e companhia, O mal de Montano, Paris não tem fim, Suicídios exemplares e acaba de sair do prelo Doutor Pasavento. Consagrado em 2006 com o prêmio da Real Academia Espanhola, uma de suas características é misturar sem medo ensaio e ficção, isso levou o crítico José Castello a dizer que sua obra “exige o aparecimento de um novo tipo de leitor, nem passivo nem ativo, mas desarmado e disposto a se deixar perturbar pelo que lê”, e a jornalista Bia Abramo a assinalar: “É um escritor singular, tão singular quanto os personagens que habitam seus livros”. Ao retratar, em três novelas, algumas das patologias que abalam grandes escritores, criou uma espécie informal de trilogia nomeada Catedral metaliterária, usando a literatura como marco de reflexão e ponto de fuga. Por essas e outras, a narrativa de Vila-Matas é leitura instigante e intrigante. A seguir, o autor com a palavra, numa pequena entrevista feita por e-mail e, surpreendentemente, respondida quase no mesmo instante.

Qual o papel da literatura no mundo de hoje?
Non olet (não cheira), foi a expressão que utilizou o imperador romano Vespasiano em relação ao dinheiro, em resposta a seu filho Tito Lívio quando este o recriminava quanto à cobrança de impostos pelo uso dos mictórios públicos. Hoje em dia, quando tudo gira em torno do dinheiro, é impossível que o pensamento e a arte literária ocupem lugar central. O máximo que temos é uma “cultura do ócio”. Nessas complicadas circunstâncias, os verdadeiros escritores fazem o que podem.

Pode-se dizer que um dos temas centrais de Doutor Pasavento é a necessidade
Aparentemente, o livro gira em torno do tema do desaparecimento. Um escritor consagrado deseja deixar de ser visto (quer se ocultar, à maneira de Salinger), decide que não quer escrever para logo ter de ser entrevistado e fotografado. Ao tentar desaparecer, descobre que ninguém se preocupa que tenha sumido. Isso o faz sentir-se ainda mais só do que acreditava estar.

A experiência literária existe sem a experiência de vida?
Vida e literatura seguem unidas em franca camaradagem. Nesse mundo, não há nada que não esteja ligado.

Como surgiu a ideia para sua Catedral metaliterária? O que existe por trás disso?
Sem que eu tenha planejado previamente, Bartleby e companhia, O mal de Montano e Doutor Pasavento pertencem a um mesmo impulso criativo. Analisam três patologias dos escritores. O silêncio (Bartleby), a literatura como droga (Montano) e a necessidade de não ser visto, de escrever na sombra (Pasavento).

Ensaio e ficção se misturam em Doutor Pasavento. Qual a importância e o objetivo disso?
A forma literária que emprego une ficção e ensaio sem permitir que se note o salto de um gênero ao outro. Na minha cabeça, não existem compartimentos fixos, não coloco fronteiras entre os gêneros. Pensamento e ficção caminham juntos.

“Pensar que somos o que cremos ser”, no dizer de Pasavento, é uma viagem transformadora ou uma armadilha nefasta?
Eu sou outro. Se isso fosse verdade, seria um consolo. “Não sou desenraizado: simplesmente não tenho raízes”, diz. Qualquer simulacro de enraizamento que não seja metafísico, metabiológico ou metatemporal, o rechaço, o vômito… A única verdade que me ilumina, que me dá esperança é o “eu sou outro”.

Quais são os escritores e as obras fundamentais em sua vida?
Digamos que, no século passado, não havia nada superior à profunda e profética obra de Kafka.

O que você está lendo agora?
William Gaddis, Flann O’Brien, Roberto Bolaño, Maria Alzira Brum Lemos.

Em que trabalha neste momento?
Publico na França e na Espanha minha nova novela Dublinesca e o breve ensaio narrativo Perder teorias. E estou escrevendo meu novo livro Doctor Finnegans y monsieur Hire.©