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sábado, 29 de maio de 2010

DUAS ELITES / Rascunho

DUAS ELITES
Os resultados e estratégias da "velha guerra" entre alta literatura e literatura de gênero

Tereza Yamashita

Caro leitor, por um minuto esqueça que o mundo não é feito somente de extremos, que as coisas não são apenas pretas ou brancas. Esqueça todas as gradações, todos os matizes, todas as etapas intermediárias entre o sólido e o líquido, entre o líquido e o gasoso. Só por um minuto, vou precisar simplificar a realidade a fim de apalpar certo fenômeno que, como qualquer fenômeno deste mundo de certezas provisórias, sai irritantemente do foco sempre que alguém tenta capturá-lo. Agora venha comigo e procure pensar que no mundo literário existem apenas dois grupos antagônicos. Esqueça as outras possibilidades, os grupos menores de que cada grupo é feito, os conflitos e as contradições que agitam internamente as células de cada grupo. Só por um minuto, vamos simplificar.

Imagine um grupo chamado crítica acadêmica. Esqueça que os subgrupos que o formam - multiculturalistas, estruturalistas, pós-modernistas, sociológicos, teóricos da recepção, etc. - estão em constante combate ideológico. Imagine outro grupo, chamado literatura de gênero. Esqueça que os subgrupos que o formam - new weirds, cyberpunks, new wavers, góticos, adeptos da FC hard, etc., para ficar apenas na ficção científica - também estão em constante combate ideológico.

É sabido que a crítica acadêmica, praticada nas universidades e em boa parte da imprensa (a maioria dos jornalistas tem mestrado e doutorado, outros são professores universitários), torce vigorosamente o nariz para a literatura de gênero: policial, espionagem, ficção científica, fantasia, terror, etc. Também é sabido que os autores, os editores e os consumidores da literatura de gênero torcem o nariz, com igual vigor, para a crítica acadêmica e as obras que ela legitima. Isso deixa claro que o jogo literário, diferente do futebol ou do boxe, tem pelo menos dois conjuntos de regras. O critério aplicado pelo primeiro grupo na avaliação das obras literárias é o reverso do critério aplicado pelo segundo grupo.

São duas elites, cada qual com sua balança e sua régua. A primeira diz que trabalha apenas com a alta literatura, com a grande literatura, com a Literatura com inicial maiúscula. Ela acusa a segunda de trabalhar somente com a baixa literatura, com a literatura vulgar, fácil, de entretenimento. A segunda elite acusa a primeira de ser elitista, aristocrática e esnobe, de só apreciar obras de linguagem complicada e obscura. As obras abençoadas pela segunda elite geralmente vendem mais do que as obras abençoadas pela primeira, que se ressente muito disso. E se vinga, fundando um clube muito mais elegante e prestigiado, chamado establishment, ao qual jamais permitirá que sejam admitidos uma obra ou um autor da segunda elite, que também se ressente disso.

Os dois critérios de avaliação literária são:

Critério da elite acadêmica

1. Linguagem original, conotativa, que não possa ser atribuída a outros escritores do presente e do passado, por vezes avessa à norma culta. O autor deve se expressar de maneira única, inaugurando seu próprio modo poético.

2. Subjetivismo. Narrador modernista, tortuoso ou fragmentário, psicológico, pouco confiável, às vezes delirante.

3. Enredo frio, pobre em ação, sem muitas peripécias ou surpresas, próximo da vida comum. A forma literária é mais importante do que o conteúdo.

4. O mundo interior do protagonista e das personagens é mais importante do que seu mundo exterior.

5. Fuga do gênero a que (supostamente) pertence. Faz parte do desejo supremo de originalidade a rejeição das principais diretrizes do gênero a que a obra pertenceria. O novo romance quer transcender os limites do gênero romance, o novo conto quer transcender os limites do gênero conto, o novo poema quer transcender os limites do gênero poema.

6. Purismo. As obras fronteiriças ou mestiças, que apresentam elementos dos dois mundos, são violentamente rejeitadas pelo sistema.

Critério da elite da literatura de gênero

1. Linguagem transparente, denotativa, por vezes complexa, mas ainda assim reconhecível por uma vasta gama de leitores. O autor deve se expressar respeitando a norma culta que orienta o uso do idioma.

2. Realismo. Narrador clássico, organizado e disciplinado, pouco introspectivo, confiável, onisciente.

3. Enredo quente, rico em ação, cheio de peripécias e surpresas, afastado da vida comum. O conteúdo literário é tão importante quanto a forma, ou até mais.

4. O mundo exterior do protagonista e das personagens é mais importante do que seu mundo interior.

5. Adequação ao gênero e ao subgênero a que pertence. O romance ou o conto policial, de fantasia ou de ficção científica respeitam as balizas que definem o gênero e o subgênero a que pertencem.

6. Ecumenismo. As obras fronteiriças ou mestiças, que apresentam elementos dos dois mundos, se não são bem aceitas pelo sistema, ao menos não são sumariamente rejeitas.

Muitos autores do primeiro grupo caem em depressão ao perceberem que seu romance, ou sua coletânea de contos ou de poemas, é um retumbante fracasso comercial, apesar do amplo reconhecimento da crítica especializada. Jamais terão o número de leitores de que se julgam merecedores. Muitos autores do segundo grupo, diante do sucesso de vendas de seu romance, ou de sua coletânea de contos (raramente há poetas aqui), também ficam deprimidos ao perceberem que jamais terão o reconhecimento da crítica acadêmica e conseqüentemente jamais figurarão nas apostilas e nos compêndios do ensino oficial. Jamais pertencerão ao establishment.

Uns aceitam a contragosto a situação e seguem em frente. Outros esperneiam e brigam. Insultam. Dizem, os do primeiro grupo, que o Brasil não é um país de leitores (de leitores qualificados, é o que querem dizer), afirmam que a imbecilidade e a massificação reinantes são culpa da tevê e da péssima qualidade do ensino público. Dizem, os do segundo grupo, que os críticos acadêmicos confundem complexidade com complicação, afirmam que os membros dessa elite literária beneficiam as obras mais áridas e menos inteligíveis como estratégia de dominação cultural e social.

Mas o maior pecado que os membros de cada grupo cometem é avaliar as obras do grupo adversário com o critério errado. Avaliar as obras da literatura de gênero com o critério da elite acadêmica gera todo tipo de mal-entendido. Avaliar as obras da alta literatura com o critério da elite da literatura de gênero também. Confusão e encrenca. Nada de proveitoso pode resultar dessa inversão de valores motivada pelo puro chauvinismo.

Aí está o esboço em preto-e-branco do conflito alta literatura versus literatura de gênero. E se acreditarmos, concordando com o que Étienne Souriau escreveu em A correspondência das artes, que há certa analogia entre os diversos sistemas artísticos, esse esboço de uma luta de classes literárias poderá ser facilmente adaptado à esfera do cinema, do teatro, da música, etc.

Obrigado, caro leitor, por aceitar meu convite e atravessar comigo uma paisagem simplificada, que, apesar do desenho esquemático e sem detalhes, parece representar relativamente bem um conflito real, um dilema que não é de hoje. E chegamos ao ponto principal da caminhada. Não ao seu final conciliador - estamos muito longe de encontrar a solução para o impasse -, mas ao meio: à simples, clara e objetiva formulação do problema. Uma formulação que procurou evitar as falácias tão comuns (sofismas, falsos axiomas, observações inexatas, erros de acidente) nas mesas-redondas e nos debates on e off-line. Para que você agora opine, concordando, discordando ou mudando o ângulo de visada e propondo outro modo de avaliar a situação.

Um comentário:

Unknown disse...

Professor aqui é o catiguria eeses textos seus tão muito massa kkkk =D