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terça-feira, 18 de agosto de 2009

Entrevista com o ensaísta e poeta Wanderson Lima



Herasmo Braga

  • Como você situa hoje a literatura?


Há uma literatura pejada de auto-consciência, voltada para exercícios metalingüísticos e auto-reflexivos. É mais ou menos o que John Barth chama de “literature of exhaustion”, uma espécie de “borgeanização” da literatura (infelizmente, sem a mesma consciência crítica e densidade de pensamento que Borges punha em seus escritos). Metaficções,citações, intertextos, clonagens, colagens, simulacros, homenagens, pastiches, paródias, plágios. Há uma outra literatura imersa num hiperrealismo que o mais das vezes é um maneirismo refinado, e não uma forma de consciência aguda do social. Digo isto não para condenar o refinamento estético, mas apenas para acentuar que “realismo” de certos escritores (Rubem Fonseca, por exemplo) é bem menos sociológico do que certa crítica supõe. Há também a literatura engajada das minorias marginalizadas, fortemente empenhada nas tarefas de correção política e alargamento do cânone, porém pouco atenta à qualidade estética dos textos (para alguns engajados, “qualidade estética” é o nome que se dá a um trambique secular que o Ocidente branco e rico armou para exercer sua dominação). É comum essas vertentes confluírem entre si, e o resultado pode ser de alta excelência, como se vê no sul-africano J. M. Coetzee. Mas na maioria das vezes este coquetel ou gera obras pedantes ou de mau gosto. De um modo geral, nestes tempos em o sujeito foi demitido, todo texto é intertexto e a linguagem é quem fala o sujeito, a literatura abandonou as experiências densas, considera narrar uma coisa ingênua e evita uma abordagem “direta” da realidade. Quando tenta resgatar estas experiências ou cai na nostalgia (o historicismo de que nos fala Fredric Jameson) ou no engajamento ingênuo.

  • Em relação às produções literárias e cinematográficas há autores que você acompanha ou prefere ser adepto dos já consagrados?


Não concordo que tradição seja sinônimo de opressão ou de embuste ideológico. Assim, dou primazia, em literatura e em cinema, aos “consagrados”, ao cânone. Para mim, reler Camões é mais interessante do que sair à cata de novidade. Nietzsche nos aconselha a tornarmo-nos, deliberadamente, anacrônicos por algum tempo. Como? Lendo o antigo e esquecendo os modismos de nosso tempo. Este exercício reforça muito nossa auto-crítica, permite-nos julgar os valores de nossa época com um distanciamento mínimo, porém necessário. No entanto, sou irremediavelmente do meu tempo. E, por isso, não abro mão de conferir o novo ou o ainda não “consagrado”, quando não por outros motivos, ao menos por dever profissional. Leio e assisto a muita coisa nova, principalmente assisto. Esta semana, por exemplo, conheci o cinema do chinês Hou Hsiao-Hsien e o da iraniana Hana Makhmalbbaf, artistas poucos conhecidos no Brasil, mas possíveis renovadores da sétima arte.

  • Você compartilha da idéia, apontada por alguns, que a poesia tomou um caminho da decadência e a prosa vigente é estéril de inventividade tanto do ponto de vista da linguagem quanto das construções dos enredos?


“Inventividade” é um conceito da alta modernidade inconveniente para se ler obras da atualidade. Supõe um teleologismo que, numa visada geral, foi superado. “Decadência” é outro termo digno de contestação, algumas das quais coincidem com a que fiz ao termo anterior. É difícil esperar, de nossa época, mais que auto-reflexões e ironias. Porém, isto não me parece, no caso de artistas como Borges e Kiarostami, entre tantos outros, coisa de menos.

  • Que autores do cenário nacional você destacaria na prosa e na poesia?

Creio que me peça nomes que estão se firmando ou que, esperamos, irão se firmar; assim o farei, evitando citar figurões. Na prosa, Francisco Dantas, Milton Hatoum e Bernardo Carvalho. Na poesia, Claudia Roquette-Pinto, Rodrigo Petronio, Augusto Contador Borges, Fernando Paixão, Régis Bonvicino, Cláudio Daniel, Edson Sebastião Macedo, Donizete Galvão, Adriano Lobão Aragão e o Fabrício Carpinejar dos primeiros livros. A profusão de nomes que cito em poesia – poderia ter citados uns 2 ou 3 a mais – dá-se mais porque leio mais este gênero, pois a prosa, a meu ver, anda mais vigorosa.

  • Enquanto crítico, como você analisa e se situa dentro das teorias literárias?

Meu anseio é me tornar ensaísta, daí certo ceticismo quanto a conceitos, escolas e doutrinas. O ensaio detesta lugares fixos, enrijecimentos conceituais, descuidos com o estilo em prol da propalada objetividade científica. Não se trata de depreciar os conceitos e o rigor; a questão é não fetichizá-los, colocando-os em primeiro plano, como muitas vezes eu já fiz e não quero voltar a fazer. Em termos de teoria literária, leio muita coisa e quero crer que fique algo das especulações marxistas (daquelas mais abertas e dialéticas, como Benjamin), dos estudos sobre mímesis e do pós-estruturalismo francês.

  • Em relação aos emergentes Estudos Culturais, você os considera como ampliação dos horizontes das teorias e criticas literárias ou os toma como um sentido invasivo de outras discussões que fogem, em tese, das formulações tidas como literárias?

Remeto o leitor interessado ao meu artigo “A Virada cultural e a crise dos estudos literários”, onde trato com certo vagar desta questão. Reproduzo a seguir, com pequenas alterações, um fragmento deste artigo: O desafio dos estudos literários é provarem que têm função específica que não pode ser preenchida pelos estudos culturais. Esta função parece ser: preencher o reducionismo deixado pelos culturalistas, isto é, demonstrar que uma obra literária é sempre algo mais que um produto da e uma intervenção na cultura. Para que isso ocorra é preciso mostrar que o paradigma axiológico dos culturalistas é complementar e não oposto ao paradigma interpretativo. Nesta perspectiva, os estudos culturais e os literários são complementares, e não opositores. Um explora a obra enquanto objeto de cultura; outro dá preferência a questões formais e estéticas. A crítica cultural exige achegas formais, e nisso precisa do instrumental da teoria literária; a crítica literária não pode cair no imanentismo de outrora, e nesse ponto os estudos culturais ensinam como evitar a ingenuidade de considerar uma obra literária como produtora de conhecimentos desinteressados. Para que os estudos literários tenham algum valor social deve-se entender que a independência do estético não significa seu isolamento. Falar da literatura é dar um diagnóstico sobre a cultura. Não se trata, porém, de propor ingenuamente uma conciliação entre os rebentos de Platão, ainda que às avessas, que propõem um eticização da estética (como nos estudos culturais) e os rebentos de Nietzsche que propõem uma estetização da ética (como na maior parte dos estudos literários). Ao fim e ao cabo, a situação dos estudos literários é no mínimo complexa: eles têm, ao mesmo tempo, que admitir o caráter nebuloso e ideológico da estética sem, no entanto, abdicar dela. Eles têm que teorizar para resolver estas questões complexas sem, no entanto, transformar esta teorização num isolamento das questões gerais. Nesta amizade bélica – ou, noutra pauta, nesta guerra amigável – a tendência é dar-se a razão para os estudos culturais, que estão sempre, presumivelmente, do lado do politicamente correto. No entanto, a oposição radical nem sempre está do lado do mais “correto”. Como observa Leyla Perrone-Moisés, a abolição de gêneros e hierarquias interessa ao poder, que necessita de produtos transnacionais e de “moda mix”. O mercado, esta metanarrativa mais poderosa que qualquer relativismo cultural, sabe dar a cada um o seu lugar. Sabe democratizar a crítica aos valores a fim de anulá-la. Diluir o texto literário no caldeirão da cultura pode significar não exatamente superar uma tradição elitista chamada estética, mas, simplesmente, apagar da literatura sua zona mais inegociável contra o poder hegemônico.

  • Affonso Romano de Sant’anna nos apresenta na sua mais recente obra O Enigma vazio, a tese de que estamos rodeados por uma “crítica do endosso”, i.e, “um arco-íris verbal sobre o nada”. Você concorda com esta afirmação? Por quê?


Só não concordo com esta metáfora de mau gosto que ele inventou. Com pontuais exceções, a crítica hoje ou se reduz a fazer publicidade de livros ou a debater questões teóricas inteiramente concernentes à academia. Sobe isto Terry Eagleton escrevera um pequeno e belo livro, traduzindo no Brasil com o título “A função da crítica”.

  • Sérgio Paulo Rounet afirma em seu livro As razões do Iluminismo que o homem erudito é um ser em extinção. Se isso acontece, quais seriam as razões a seu ver? E esta extinção anunciada trará forte impacto ao mundo intelectual ou não?

Há razões sociológicas que explicam a demissão do homem erudito que estão além da minha capacidade e do meu horizonte de leituras. Intuitivamente diria que o funcionamento do capitalismo exige um especialismo em todos os setores. Além disso, a massa de informação, a pletora de publicações e descobertas chegaram a um ponto assustador. Some-se a isto, no caso do Brasil, a burrice de nossos gestores em educação, cultura e pesquisa. O “Homo Lattes” ideal – ouvi esta certeira expressão de um amigo – é o especialista na pata esquerda anterior da mosquinha de asas translúcidas. Se aparecer um problema na pata direita da tal mosquinha, ele nada poderá (ou quererá) dizer sobre ela. Se eu vou fazer um concurso para uma cadeira de literatura, por exemplo, meus artigos sobre cinema não contam, ou contam apenas a metade. Como se literatura e cinema fossem fenômenos distantes ou mesmo inconciliáveis. Imagine se eu escrevesse sobre ornitologia, ou sobre astrofísica. B. B. King já deu aulas de guitarra em universidades americanas; no Brasil eles dariam preferência a um imbecil diplomado. Sérgio Paulo Rouanet, que você cita, é um de nossos poucos eruditos e inimigo dos especialismos.

  • Para ser um crítico literário competente a erudição se faz necessária? Por quê?

Como não sou erudito, e mesmo assim pratico a crítica, serei contraditório se responder sim. É lógico que o escopo de leitura de um crítico deve ser o mais abrangente possível, mas erudição nem sempre vem acompanhada de sabedoria, rigor, sensibilidade e intuição.

  • Pierre Bayard em seu livro Como falar dos livros que não lemos desenvolve o discurso da desnecessidade de se ler tudo, afirma ele devemos nos ater “a visão de conjunto, e toda leitura é uma perda de energia na tentativa, difícil e tomadora de tempo de dominar o conjunto” e “as relações entre as idéias importam muito mais, no domínio da cultura, do que as idéias propriamente ditas.” Quais as suas considerações em relação a esse pensamento? Será que situar-se diante delas já é o suficiente?

Pierre Bayard enuncia algo sensato, mas que não passa do “óbvio ululante”. Diante da pletora de livros, revistas e teses, temos que agir seletivamente e não perder a visão de conjunto. Porém, o efeito mais provável desse livro de Bayard é apaziguar a consciência dos semi-cultos e dos preguiçosos. Acho que a atitude que devemos ter em relação às nossas leituras é agir como se pudéssemos, um dia, ler tudo que há de interessante nas áreas em que pesquisamos. Isto é otimismo, não loucura ou presunção. Acho que, no que concerne à leitura, cada um tem seu ritmo e suas necessidades, e ninguém sério, que leia para crescer pessoalmente, precisa de desculpas do tipo que Bayard, mesmo com humor e descontração, propõe. Ninguém necessita ler tudo, portanto ninguém precisa falar do que não leu. Quanto à segunda pergunta: situar-se dentro de uma visão geral é uma necessidade humana (Borges brinca inteligentemente com isso no conto “Funes el memorioso”) e só a situação concreta é que dirá se é ou não suficiente.

  • Como você analisa o pensamento daqueles que criam e recriam fronteiras literárias, às vezes, limitando-se a leitura de obras pertencentes somente a um Estado, País ou língua?

Considero um pensamento falacioso e limitador e, portanto, discordo completamente. Reafirmo com Octavio Paz: o patriotismo não é apenas uma aberração moral – é, igualmente, uma falácia estética. Nenhuma literatura se desenvolve apenas através de uma dinâmica interna: há sempre autores de fora interagindo e transformando os sistemas. Além disso, o mister das literaturas não se limita a descrever a “alma nacional”, os “valores da terra” e coisas do tipo. Nomes como “poesia piauiense”, “literatura brasileira”, “romance latino-americano” deveriam ser usados apenas por seu valor pragmático, e não porque se referem a “essências”. Quando se começa a essencializar só se produz histórias da literatura teleológicas e unívocas, falsas por inventarem continuidades sem rigor, ou mesmo arbitrariamente. Pense no nosso Estado: ninguém duvida de que esta vasta e complexa catedral que é a “Tetralogia Piauiense” esteja fincada em vicissitudes históricas, políticas e geográficas da realidade piauiense, mas sua filiação literária vem de alhures, da experiência pioneira de Faulkner e quiçá do cinema, não sendo, em absoluto, fruto de um amadurecimento de algo como o sistema literário piauiense.

  • Como se deu o surgimento e o desenvolvimento da sua paixão por cinema?

Surgiu quando assisti ao filme “Da vida das marionetes”, de Ingmar Bergman, trazido à minha casa num sábado, acho que em 1999, pelo amigo Ítalo Gustavo. Havia combinado com Ítalo que durante a semana deveríamos ler algum texto (livro completo ou não) para debater no sábado. Certa feita, em vez de texto, ele trouxe o filme. Assistimos, e a discussão foi proveitosa. Antes, eu já gostava muito de filmes (cults e não cults), mas nunca havia discutido nenhum do ponto de vista cinematográfico. Só se entende uma arte quando se começa a apreendê-la como linguagem, e não como estímulo para se debater sociologia, psicanálise ou o que seja.

  • Percebe-se na leitura de seus textos que você considera o cinema como produção de arte. Quais os cineastas e filmes que fazem parte do seu repertório de estudos fundamentais da sétima arte?
A discussão que colocava o cinema na linha de fogo entre indústria e arte já está bem velhinha. A idéia de que haja algum artista que conceba sua arte como fruto exclusivo de suas ruminações pessoais, assim como a de que haja alguma arte que se eleve acima do reino “nefando” da mercadoria, não passa de ingenuidade. Mesmo um Beckett e um Godard, artistas que implodiram seus próprios meios expressivos com o fim de não se tornarem palatáveis, acabaram sendo incorporados como tempo. Não nego a grandeza ética do gesto deles, mas apenas assinalo uma realidade, a de que cultura e mercadoria, no capitalismo tardio, são inseparáveis. Claro que isto não nos autoriza a passar uma plaina e dizer que Shoei Imamura e James Cameron, ou Thomas Bernhard e Stephen King, são a mesma coisa. É aí que entram a “postura ética” e o “talento” (termos, admito, imprecisos!). Mas cuidado! Não se trata de repetir a preconceituosa contraposição entre “cultura de massa” e “alta cultura” com o fim de condenar a primeira. Prefiro assistir o “hollywoodiano” M. Night Shyamalan ao “cult” Kim Ki-duk. Por um simples fator: Shyamalan é competente e, apesar da forte pressão do mercado, sabe engendrar discussões e produzir linguagem; Ki-duk incha seus filmes de títulos pretensiosos e imagens bonitas, mas pouco há sob a crosta dessas coisas. Quanto a cineastas e filmes fundamentais, bem, são muitos, e lista longa é coisa chata. Buñuel, Bergman e Pasolini eu acompanhei com carinho e certa sistematicidade. Abbas Kiarostami destruiu e reconstruiu muito do que eu pensava sobre cinema, e mesmo sobre arte em geral. Devo a ele e a Borges uma grande mudança em meu modo de ver as coisas.

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